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Notícias e Estórias

O momento justifica-o e o objeto da família, Ex-Militares da Companhia de Caçadores 3485, impõe-no. Vamos, todos, contribuir com notícias e estórias do presente e do passado.

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Entrevista a um ex-combatente, com histórias, que não quer contar

Alto Chicapa, 29.03.21

Estamos no mês de Março, na Primavera de 2021.

O futuro, uma vez mais, prega-nos partidas... grandes desafios para a medicina, as privações de liberdade e as ameaças de mais pobreza no mundo.

Eu sou o Carlos Alberto Santos, ex-alferes miliciano e ex-combatente na Companhia 3485, do Batalhão 3870.

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Fui militar no exército português, desde Janeiro de 1971 a Junho de 1974, três anos e seis meses. Em Fevereiro de 1972 fui para a Guerra do Ultramar.

A guerra de guerrilha em Angola, aconteceu no período de confrontos entre as Forças Armadas Portuguesas e os Movimentos de Libertação, UPA/FNLA, MPLA e UNITA, entre os anos de 1961 e 1975.

A minha ligação ao Exército terminou com a passagem à disponibilidade ou passagem à peluda, como se costumava dizer.

Continuo casado, tenho três filhos e três netos, 72 anos... velhinho! Sou natural de Lisboa, mas com genética minhota, de Melgaço, por parte da mãe, e beirã, de Unhais da Serra / Covilhã, por parte do pai.

O que vão ler a seguir, é apenas e só uma entrevista a um ex-combatente em África.

O que o motivou a entrar no exército português?

Nada, mesmo nada.

Fui obrigado, como voluntário "à força".

Naquela época ia-se a uma inspeção obrigatória no quartel da área de residência... foi um momento agitado, ficámos todos com o "pirilau" à mostra.

Mais tarde, quando menos se esperava, vinha o recrutamento, que só alguns conseguiram adiar ou escapar.

Como estava a estudar na Faculdade de Medicina de Lisboa, solicitava adiamentos anuais de incorporação no exército. Foram dois anos e meio de espera (era o termo usado)... mas, a seguir ao Maio de 68, quando a revolução dos estudantes franceses começou a influenciar as organizações em Portugal, a PIDE atuou sem piedade nas Universidades, com as chamadas rusgas nas faculdades, que terminavam, quase sempre, com pontapés nos "tomates", murros, chapadas e a inevitável prisão dos líderes académicos e dos outros, que estivessem por perto.

O governo, por sua vez, como forma de coação, determinou às reitorias o cancelamento de todos os pedidos de adiamento de incorporação no exército.

No final do primeiro período escolar... uma semana antes do Natal, recebo um postal e uma guia de marcha para me apresentar  no dia 11 de Janeiro de 1971 no Quartel, em Mafra.

Foi um Natal muito sofrido lá em casa.

A minha mãe, andava a fazer tratamentos a um cancro de mama... abraçava-me a chorar... chorava sem fim (terrível).

Depois da experiência, mudava alguma coisa no serviço militar?

Mudava muito. Conforme está hoje, o serviço militar é uma aberração, não serve para nada... é a imagem decadente de quem nos governou e governa.

O Serviço Militar deveria continuar, para homens e mulheres, mas num registo de formação e de envolvimento cívico... sem estragar ou empatar a vida do cidadão.

Fazia bem a todos.

Mesmo só de passagem, a organização militar é uma escola de vida, de disciplina e de valores... no final de um percurso militar, alguém me dizia: quando entrei para a tropa era um "atado", saí de lá um homem.

O modelo israelita, independentemente da visão daquela guerra, poderia servir para uma base de trabalho.

Quantos quartéis e infraestruturas estão subaproveitados?

Porque estão obsoletos os hospitais do exército, da marinha e da força aérea?

O laboratório militar, de onde saíram tantos medicamentos, os LM e outros, até vacinas... porque foi esquecido?

E o centro de estudos epidemiológicos do exército?

A memória pode ser curta (?)... mas há milhares de profissionais formados na Força Aérea, na Marinha e no Exército a trabalhar em empresas civis de diferentes sectores... e hoje?

Gostava de ver os seus netos no serviço militar?

Gostava, mas não na guerra.

A disciplina, a hierarquia, o sentido de organização e o respeito pelas diferenças fazia-lhes bem.

Na guerra não! Porquê?

Andei na guerra em África... sei o que é.

Na guerra não... as guerras são injustas e desnecessárias.

Quando o mais forte ser humano, é tão frágil numa pandemia... guerra para quê?

O que sentiu quando foi chamado para combater em Angola?

Fiquei assustado.

Era um menino!

Não sabia o que era combater, nem estava treinado para tanta responsabilidade... por isso, ouvia-se: carne para canhão.

No Leste de Angola, aquilo não era brincadeira, já era uma guerrilha a sério... quem facilitava, geralmente recebia problemas de volta... os que estavam em fim de comissão "os velhinhos", diziam aos recém chegados, "os maçaricos": se não matares primeiro, és o homem que morre... a estupidez da guerra.

Pensou, alguma vez, que podia não voltar vivo?

Pensei muitas vezes, principalmente durante os trajetos na picada.

Quando andava na mata sentia-me mais tranquilo... as noites e as madrugadas também não eram de confiar, no entanto o meu cão Buda, que parecia nunca dormir, dominava a escuridão, sem ladrar... era a melhor sentinela.

Tínhamos uma vida muito complicada... a mina acontecia e a bala espreitava.

A interajuda desinteressada, entre nós, tornavam tudo mais fácil... quase o único conforto... não me canso de dizer: estou vivo, porque os meus camaradas estavam perto de mim.

O que sentiu quando chegou a uma terra tão diferente de Portugal?

O primeiro choque foi o calor, em Luanda. Parecia uma fornalha.

Depois... as pessoas.

Nos primeiros dias, os pretos pareciam todos iguais... os miúdos também eram muitos, não paravam, estavam sempre a pedir... os brancos (silêncio)... não imaginava que fossem assim tão distantes da realidade e alheios a tudo, exceto às suas vaidades.

Num restaurante da ilha, só por estarmos a conviver ou talvez um pouco mais animados, senti(mos) a verdadeira dimensão do desprezo que tinham por nós, militares... uma família marcou-me para sempre... o vosso lugar é no mato, fora daqui... a seguir, veio o empregado: vão ter que terminar e sair.

Com o tempo, fiquei a conhecer melhor aquelas atitudes... uma prática muito comum nas grandes cidades. Por exemplo, em Malange, terra de diamantes, a arrogância era enorme... quando os "senhores" caminhavam no lado direito da estrada o preto sentia-se na obrigação de passar para o outro lado.

Para quem acabava de chegar, de Portugal, para combater e para ajudar as populações, estas atitudes eram impensáveis.

A vida no interior de Angola era diferente... era mais pura.

Viviam de uma forma rudimentar... praticamente só tinham o que a natureza lhes dava, isto é, se não fossem espoliados pela guerrilha.

Apesar da guerra e de vivermos paredes meias com o "inimigo", era, apesar de tudo, um ambiente fascinante e culturalmente rico.

As pessoas eram boas e sem maldade... quando gostavam, eram amigas. Mas, também os havia, os de dupla pátria e os malandros.

Não contando com os militares, num raio de 100 /150 kms só existia um ou outro branco, geralmente comerciante ou o chamado chefe de posto.

Viver no interior, com a natureza e com pessoas muito cultas, à sua maneira, marcou-me muito. Foi um fascínio, que perdura, meio século depois.

Como resolvia os momentos de maior aflição?

Não sou de grandes aflições.

Nesses momentos sou frio. É preciso resolver... resolve-se sem nervos, sem medos e com a consciência de que pode correr bem ou não.

No dia seguinte, vem o pior, os meus intestinos desfazem-se... na escola, depois dos exames, acontecia-me o mesmo.

Em conflitos, com armas na mão, uma indecisão era fatal.

Com a experiência a maioria ficou pronta para tudo e ia sempre em frente, como se nada fosse... quase sem a perceção do risco.

Tem alguma imagem marcante de mortes?

Não houve mortes na Companhia 3485... apenas feridos em acidentes.

Só tenho uma situação marcante com a morte. O assassinato de um homem, que violou a mais nova de quatro mulheres de uma família na aldeia de António Cavula.

As quatro mulheres, unidas pela natureza de um casamento polígamo, decidiram fazer justiça... envenenaram e enterraram o agressor, ainda vivo.

Quando o chefe de posto foi informado daquela morte exigiu a retirada do corpo da improvisada sepultura. À medida que o corpo ia sendo retirado o povo fugia com medo do feitiço dos espíritos... a força do veneno criou um monstro.

Semanas depois, quando me encontrei com o Chefe de Posto perguntei-lhe como tinha ficado o caso do monstro de António Cavula... respondeu: O Soba, depois de consultar os Mais Velhos, concordou com o julgamento dos espíritos, o homem deixou de ser homem... quando decidem assim e não há conflitos, o Chefe de Posto não se envolve.

Como entendeu a guerra colonial?

Como todas as outras... não há guerras sem interesses paralelos, políticos e económicos.

Em Angola não fugiram à regra... o povo acabou por ser o principal sofredor... continuam subjugados ao colonialismo geopolítico... ao poder económico, ao consumismo e à dívida.

Quais eram os momentos de descontração?

Descontrair sem controlo era perder o foco da guerra... era perigoso e podia pagar-se com vidas.

Efetivamente havia momentos assim, para esquecer... entre petiscos, jogos e conversas.

No meu caso, também juntava a esses momentos um diário e alguns livros... lia muito.

Havia militares com problemas traumáticos?

Traumas... acho que não.

Só algumas "pancadas" leves, talvez isso! Eram apenas situações comportamentais, de uma dezena de militares mais problemáticos... quase sempre à volta da violência sexual, das drogas leves e da negação das regras.

A ditadura e a rigidez de comando também ajudavam à indisciplina dos "revoltados", que se manifestavam, depois, fora de portas, com comportamentos extremados.

Sem querer particularizar... hoje sim, há gente com problemas traumáticos, como por exemplo: os que não querem ouvir falar dos camaradas ou da tropa, os que só querem distância dos temas... mesmo que a mente sofra ou as "dores" de consciência, reais ou não, atormentem os dias.

Quando soube que a missão em Angola estava a chegar ao fim, o que pensou?

Sinceramente, não pensei em nada... mas tinha, desde o final do ano de 1973, um duplo sentimento amargo: os anos de juventude perdidos, para nada, e a hipocrisia daqueles, que nos foram buscar para combater e no final fizeram tudo para nos esquecer.

Este sentimento exacerbou-se, entre o quarto trimestre de 1973 e o primeiro trimestre de 1974, na sequência das alterações impostas pela paupérrima gestão do Sr. General Hipólito.

Os erros de estratégia, como o "rasgar" de acordos e a retirada de militares influentes e importantes nas pontes entre o IN e as NT, acabaram por ser fatais para centenas de camaradas, numa guerra que parecia ganha.

A falta de diplomacia e o desprezo  pela nova UNITA, deram força para ataques quase em simultâneo com o MPLA. Houve perdas, sem precedentes, de muitas vidas de civis, de militares e a destruição de muito material nas NT... armas, viaturas, equipamento de comunicações e até infraestruturas.

O que sentiu quando regressou da guerra?

Foi, sem dúvida, uma explosão de emoções, entre sensações estranhas e de alegria.

Senti o conforto da casa e da família e a urgência de recomeçar a vida em Portugal.

Encontrei o meu país, em pós revolução de 25 de Abril, com convulsões sociais, manifestações e muitas greves.

Sem contar, fiquei envolvido numa nova "guerra"... procurar trabalho.

Uma curiosidade... durante as primeiras noites em Portugal, não conseguia adormecer na cama, apoderava-se, de mim, uma agitação inexplicável.

Parecia que faltava o ar... dormi várias semanas deitado no tapete e de janela aberta.

Faziam-lhe muitas perguntas sobre a guerra?

Nos anos a seguir ao 25 de Abril, as conversas sobre a guerra colonial eram evitadas... praticamente, não perguntavam.

Havia um sentimento de culpa na sociedade portuguesa, até porque havia os colonos regressados e os que tinham fugido das retaliações ou da guerra civil em Angola.

A guerra foi marcante, para quem a viveu... mas, também havia grandes momentos de amizade.

Como compara a guerra colonial com as guerras de hoje?

De uma maneira ou de outra, guerra é sempre guerra... há mortes, feridos e destruição.

Atualmente, a guerra acontece com mais tecnologia, armas sofisticadas e até visão noturna... é diferente. Usam a espionagem dos satélites e a robótica de precisão... atacam onde querem.

Acho que não há comparação possível... passou-se da armadilha e da flagelação aos drones e à robótica.

Há alguma história que queira contar?

Há muitas histórias simpáticas, que se poderiam contar aqui, resumidamente... mas iam desvirtuar a finalidade desta entrevista.

No entanto, no site da Companhia 3485 (www.cc3485.pt), podem ler histórias com momentos daquela época... se não estão mais, foi porque não as quiseram contar ou então, são para esquecer, mesmo!

Também há outras histórias, que de tão íntimas... só as queremos guardar para nós.

Os dois anos e meio de guerra, o ambiente hostil e o que passámos... essa sim, é a nossa história (silêncio).

Parece desiludido, pela minha decisão...!

Como não quero desiludir, conto então uma história real, passada numa terra de lindas mulheres, Chaves em Portugal.

Já não me lembro como tudo começou, mas decidiram que tinha de dar aulas regimentais de preparação para o exame da quarta classe.

Dava aulas duas vezes por semana, numa sala na Câmara Municipal.

Depois, no quartel, durante a tarde de quinta-feira, respondiam a um teste livre com a matéria da semana... três perguntas e uma cópia de um pequeníssimo texto.

Entretanto, espalhou-se um boato (intencional)... as perguntas e os textos, que se repetiam nos testes de aprendizagem semanal, saíam no exame final.

Ao princípio, demonstravam falta de empenho e eram pouco cuidadosos... gordura, sujidade... iam à escola por obrigação.

Na terceira semana de aulas, mais ou menos a meio, informei-os: vocês ainda não sabem... quem vai avaliar o vosso exame é a professora que tem estado a corrigir as vossas provas semanais.

Se a quiserem conhecer... janta quase todos os dias na messe de oficiais... juntem-se, e vão até lá, eu faço o resto.

Apresento-vos a minha mulher...

Como por magia, tudo mudou a partir desse momento. Mais empenho, letras cuidadas, corações desenhados, papel perfumado e um exame da quarta classe inesquecível... momentos únicos, que nos acompanham pela vida fora.

Consegue comparar a atual pandemia Covid 19, com as doenças, que existiam durante a guerra colonial, em Angola?

Não consigo fazer essa comparação... não tenho conhecimentos e as épocas também são distintas.

Mesmo assim, há algo em comum: hoje, ainda não temos os tratamentos a 100% para o coronavírus Covid 19 e no passado só havia a penicilina para anular infeções provocadas por bactérias, mas, apesar de tudo, havia a vantagem  de não haver mobilidade fácil e grandes concentrações de pessoas.

Durante a guerra, a Sífilis e a Gonorreia, transmitidas através da relação sexual, eram as doenças mais complicadas de tratar.

Havia também a Lepra e doenças hemorrágicas muito letais.

Finalmente a Malária ou Paludismo, que meio século depois, ainda é uma doença endémica em África.

É uma infeção dos glóbulos vermelhos, causada pela picada do mosquito Anopheles fêmea infectado.

Atacou muitos militares na Companhia 3485.

A minha experiência com a doença não foi nada boa. Febre acima de 40º C, suores frios, uma contínua dor de cabeça, falta de força para sair da cama e não conseguia raciocinar. Só ao fim de 4 dias é que tive a verdadeira noção do que estava a acontecer.

Não gostei de terminar a minha entrevista assim... mas, como é óbvio, a vida também é vivida em luta contra as doenças.

Um abraço do tamanho do Chicapa.

Carlos Alberto Santos

 
 
 
 
 

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