HOMENAGEM, um trabalho da poetisa Filomena Gomes Camacho.
(Aos Militares que um dia partiram para o Ultramar)
Carlos, Manuel, José…(não importa o nome) e seus companheiros, foi penetrando para o interior daquele navio enorme, ancorado no rio Tejo.
Eram grandes as letras que destacava o nome do paquete: VERA CRUZ.
Pouco depois todos se acotovelavam, tentando visualizar o cenário exterior, para acenar à multidão que se distanciava no cais de Lisboa.
VERA CRUZ era, na verdade, um navio enorme, requisitado nos anos de 1961 - tal como outras unidades, da Marinha Mercante Portuguesa, pelo governo português - para transporte de tropas e material bélico com destino ao ultramar. O seu peso bruto era de 21.765 toneladas; o comprimento de 185, 75 metros; a largura de 23 metros; e 15,80 metros de pontal. Atingia a velocidade máxima de 42,6 quilómetros hora, sendo o consumo de combustível – óleo - de 140 toneladas e, diariamente, gastas 200 toneladas de água.
A sua capacidade era para alojar 1.242 passageiros com três classes. No interior havia bares, cinema, jardim de inverno, duas piscinas, hospital, e era equipado com ar condicionado.
Carlos – (chamemos-lhe assim) deslumbrava-se com a imponência, com a construção…daquele navio, onde ele agora encetava a viagem que o marcaria para toda a vida…viagem que, praticamente, já havia iniciado desde o dia em que fora mobilizado, agrupado ao batalhão, e lhe fora atribuído um número de registo.
Viagem, praticamente, iniciada desde o dia em que lhe fora ministrado todo o tipo de estratégia - de como sobreviver em África - e quando recebera o camuflado e lhe foram dadas as vacinas… Recordou-se dos dez dias gozados em casa, antes daquela partida, dias concedidos para se despedir da família, dos amigos, arranjar uma madrinha de guerra e fotografar, mentalmente, cada rosto querido, cada lugar do seu lar, da sua cidade. Sentimentos confusos e perturbantes iam-lhe dando a sensação de uma gravata apertada no pescoço. Sentia desejos de chorar. Sentia desamparo, solidão, incerteza… Indubitavelmente, Vera Cruz, ia descrevendo, na sua trajectória, uma rota de ida…
Para quantos dos que, viajavam naquele navio, iria ser apenas a viagem de ida!? Estremeceu! Na sua mente, em turbilhão, as ideias começaram a tumultuar-se! E, num misto de entusiasmo e desânimo…não visualizava senão apreensão! Como gostaria de ter feito aquela viagem programada…desejada… recreativa…como tantas viagens que fizera acompanhado pelos seus pais, familiares, amigos!…
Esta era uma viagem diferente!
Não programada…mas imperiosa de ser feita! Não desejada…por ser uma missão perigosa! Não recreativa…pois, a incerteza, era tão patente como o camuflado que envergava!
Carlos iniciava a sua carreira militar. Um verdadeiro desafio a nível físico e psicológico! Um trabalho árduo! Uma outra faceta da sua vida!... Uma outra faceta onde iria aprender novas matérias, desenvolver novas capacidades… Ainda que imaginasse um pouco difícil, a adaptação, ao estilo da vida militar…achava-a cheia de experiências verdadeiramente aliciantes! Enfrentar novos desafios, aprender a superar os seus limites, aprender o valor da camaradagem, fazer novas amizades…eram experiências que, esperava, constituírem factores positivos e empolgantes! Viajava com desconhecidos que iriam enfrentar, como ele: desafios, perigos, lutas, adaptações…naquele Pais de proporções enormíssimas (catorze vezes e meia maior que o seu)!
Quantos contingentes militares já os haviam antecedido, numa viagem, como aquela, para um fim semelhante, sem que muitos deles tivessem regressado!? Ou regressado com sequelas traumáticas físicas ou emocionais!? Ou regressado sem quaisquer sequelas…para fazerem dissertações de vivências incríveis, de episódios arrepiantes!?
Carlos pensava em qual destes quadros se iria agrupar o seu destino... A algazarra dos colegas começava a abafar o barulho suave, mas também medonho, que o navio ia fazendo ao sulcar aquela imensidão de água. Aguas que, reflectindo a cor do céu, dava ideia de chumbo liquido e, junto à proa, uma brancura espumante a contrastar. Permaneceu no convéns, por longo tempo, assim como a maioria de seus companheiros.
Carlos imaginava África!... Imaginava a guerra!… O seu contingente seguia rumo à guerra do Ultramar...
Carlos deu consigo a arquitectar estratégias. Estratégias que o subtrairiam aos perigos…
Deu consigo a fazer conjecturas de como sobreviver num Pais cheio de leões, leopardos, cobras gigantescas, aranhas enormíssimas, para além de uma guerra sangrenta!...
Aquelas divagações eram balsamo para aquietar suas preocupações, e bálsamo a perspectivar ideias de um regresso heróico, pleno de inúmeras façanhas…façanhas para contar na esplanada do Café, contar aos seus pais, aos conhecidos e desconhecidos…nas esquinas onde o iriam interpelar…na rua… em todo o lugar…
Ah! Quando regressasse!...
Falaria dessa África enigmática!... Não de uma forma inventada mas de uma maneira vivenciada!...
Traria, de lá, a cor com que o sol tórrido iria carimbar a sua pele!
Traria, de lá, um relato empírico dos muitos animais da selva que iria conhecer!
Traria, de lá, a lembrança dos odores e dos sabores da gastronomia Africana que a Europa desconhecia!
A lembrança das paisagens!...
Daquele povo diferente do seu…
Do sotaque desigual…
Das muitas palavras gentílicas…
Na quietude daqueles pensamentos transcorriam quietas, lentas e sem pressa, as horas…como que levadas pelos pés de uma criança.
Um toque de recolher tirou-o das suas cogitações.
Sentiu que umas pequenas gotículas lhe desciam para a comissura dos lábios…
Provou-as.
Era salgado o sabor…
Lágrimas? Salpicos do mar? Foi-lhe indiferente…