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Notícias e Estórias

O momento justifica-o e o objeto da família, Ex-Militares da Companhia de Caçadores 3485, impõe-no. Vamos, todos, contribuir com notícias e estórias do presente e do passado.

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O momento justifica-o e o objeto da família, Ex-Militares da Companhia de Caçadores 3485, impõe-no. Vamos, todos, contribuir com notícias e estórias do presente e do passado.

Alto Chicapa (parte 3), a viagem dos grandes choques de realidade para duas centenas de voluntários à força

Alto Chicapa, 13.11.20

Colonizadores Especiais ou Ditadura

Depois de Salazar, Marcelo ainda insistia na mensagem de que eramos um povo de brandos costumes e de colonizadores especiais… mas um Imperio, que durou séculos, não se constrói com brandura!

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Foi com violência… até nos anos 70, na nossa companhia, a 3485, e em redor dela, em espaços civis, a violência psicológica e física, eram sempre a primeira opção, de tal forma, que ainda hoje a sociedade prefere o medo a falar e ignora o óbvio dos traumas do passado ou trazidos da guerra… compreendido só por alguns ou pelos camaradas, que estiveram lá.

Apesar do nosso colonialismo retrógrado, de anos, e da guerrilha dos movimentos de libertação, a soldo de outros interesses, americanos, russos e chineses, Angola estava diferente e mostrava-se ao mundo, com uma nova geração de jovens e de quadros técnicos, saídos das escolas e das universidades locais, aptos para trabalhar na saúde pública ou privada, indústrias, comercio, agricultura, pescas e minérios… enfim quase tudo o que uma nação pode ambicionar.

As deslocações, que realizei entre Luanda, Nova Lisboa, Malange, Silva Porto, Henrique de Carvalho e Sá da Bandeira, deixaram-me boas recordações.

Naquelas cidades, a classe média e média alta de angolanos de todas as origens já eram os funcionários maioritários nas empresas, no comércio e nas funções de estado. Ouvi muitas vezes tratar por africanos tanto pretos como brancos… evidentemente, nós os europeus, não pertencíamos a essa elite.

A própria guerra, onde fui envolvido, e o dinheiro que chegava, não foram elementos de destruição… foram mais-valias de progresso e construção, que incrementaram uma nova qualidade de vida. Os próprios militares milicianos, retirados das faculdades ou dos locais de trabalho em Portugal também contribuíram para a grande transformação de mentalidades.

A evolução do nosso quartel:

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Muito longe das cidades ou das vilas, no interior de Angola, onde estávamos, a realidade era outra. A felicidade não se encontrava nos bens materiais, mas sim dentro das pessoas.

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Diziam: - Os antepassados governam, as divindades ajudam, as magias completam e as superstições previnem. Nzambi (Deus) está no Céu, criou o mundo e os homens e entregou o seu governo aos espíritos, a quem cabe o maior papel… mas isto não queria dizer, que estivéssemos no paraíso.

Hoje, a postura na governação contínua inqualificável:

- Cheguei como tropa a uma colónia portuguesa (Angola), governada por ditadores;

- Como militar miliciano, deixei Angola num processo de bastidores e de interesses internacionais, que transformaram os Movimentos de Libertação em Movimentos de Destruição; e

- Como acompanho a evolução do país… lastimo a governação entre ditaduras sucessivas e entre aduladores dependentes das vaidades e dos luxos desmedidos, num retrocesso ao estilo de vida das antigas elites coloniais.

Paludismo / Malária

Apesar de a UNITA estar a poucos quilómetros do nosso quartel e com familiares nas sanzalas próximas, como António Cavula e Muaxiteca, o ambiente com as populações continuava em confiança e em descontração mútua… até nos momentos em que se ia dar uns mergulhos no rio, muitas vezes, lado a lado, com mulheres nativas a lavar roupa.

Depois de uma dessas idas ao rio, à noite comecei a sentir-me debilitado e sem forças para me movimentar. Durante uma semana o paludismo tomou conta de mim numa cama. Foram momentos difíceis. As alucinações misturavam-se com o frio e as febres altas transformaram-me num farrapo humano… ausentei-me completamente de tudo, durante dias.

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O enfermeiro Carvalho e, mais tarde, o Dr. Vilaverde devolveram-me a vontade de viver com a ajuda de algumas injeções, uns fortificantes e nos 14 dias finais com comprimidos de Resoquina, que evitavam o regresso das febres da malária.

Adultério

Ainda em recuperação, fui aconselhado a dar uns pequenos passeios pelo quartel.

Depois do jantar atravessei-me, sem querer, no caminho do camarada Cxx, um transmontano de gema, como se costuma dizer.

- Então Cxx… que grande “cadela”!

- Foda-se, só me faltava este… não quero conversa!

- Por ali… toma um banho!

- Tire a mão, sei o caminho… cabrão… és igual aos outros!

- Vai dormir!

- Não quero conversas com a “chicalhada”… só falo com a minha mãe! Quem vem lá... lááá?

- Afastei-me… deixei-o à vontade e a cambalear.

Continuou de mal com a vida e com todos… até com o quico.

Passado uns dias cheguei à fala com ele… um rapaz educado.

- Foi um momento de revolta, que me deixou mais fraco.

Dei-lhe alguma razão… percebeu a parte negativa e a conversa fluiu.

- Vim do Cambatxilonda. O homem é duro… se um tipo escorrega, leva logo uma “piçada”.

- Sabe! Andava de pau feito, até doía… deram-me alguma porra! Gostava de saber, quem foi o filho da puta.

- À noite, fui à aldeia. A determinada altura fiquei a olhar. Era ela… não era a primeira vez, que estávamos juntos… o meu olhar estava perdido e o pau já arqueava… imaginei-a à minha espera… beleza, não te assustes!

- Já percebi! Assustou-se… deu merda!

- Sim, deu merda, mas não se assustou… foi até de manhã. Era uma doida a foder, de lado. Só que… no fim… quis mais dinheiro e comida.

- Acabei castigado.

- Agora, que está tudo mais calmo, digo-te que foi bom vires por uns tempos para o quartel… um tipo morto a caminho do puto de pau feito, não era boa ideia.

- Alferes… foooda-se… era uma vergonha (tinhamos 20 /24 anos)!

À época, o adultério, em certas condições, até era bem tolerado, porque era, muitas vezes, o próprio marido que contribuía para a mulher se tornar adúltera, não só por algum abandono declarado mas também pelo proveito material que podia tirar disso.

Havia casos, em que homens idosos, rodeados por várias mulheres e mais duas ou três muito novas, longe de ser a figura do marido ultrajado, aproveitava-se da situação para aumentar os seus proveitos, naturalmente, oriundo, delas seduzirem ou deixarem-se seduzir.

A sedução na mulher, quando gostava, era natural e desejo, frequente e banalizada, mas não se pense que a moralidade estava ausente, pelo contrário haviam muitos valores de vida, impossíveis de ser avaliados à luz do pensamento e da mentalidade europeia.

Na região do Alto Chicapa, para além de um ou outro caso sazonal vindo de fora, não havia comércio sexual, como em Luanda ou em Henrique de Carvalho, havia sim a tal sedução ou uma troca material pela utilização do corpo da mulher e até do homem.

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Mudança no comando da Zona Militar Leste

A vida mantinha-se calma no quartel e a na região à nossa responsabilidade. Continuávamos sem vestígios de movimentos hostis graças ao equilíbrio conseguido pela equipa do general Bettencourt Rodrigues.

No entanto, a mudança do comando da Z.M.L. (Zona Militar Leste) motivou uma visita ao nosso aquartelamento por altas patentes militares e pelo General Hipólito, o novo responsável pela Z.M.L.

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Os preparativos foram levados ao extremo e de tal forma que até os soldados passaram a usar lençóis na cama… apenas um… para fazerem a cama à espanhola… só para General ver.

De acordo com as normas militares, reuniram na “parada” os presentes e outras individualidades vindas da cidade do Luso. Depois de prestadas as honras, o General Abel Barbosa Hipólito tomou a palavra… entre opções inconclusivas, acabou por deixar a ideia de que seria reavaliado o equilíbrio conseguido pela equipa do general Bettencourt Rodrigues.

Por meias palavras, deixou algumas ideias para a resolução do conflito à imagem da sua visão militarista posta em prática, com resultados positivos, em Moçambique. Entendia, que todos os “terroristas” deviam ser tratados da mesma maneira… pactuar com o inimigo era contrário aos princípios da honra e da ética militar.

Nos momentos seguintes, de convívio informal, perguntei a alguns camaradas, o que pensavam desta encenação de meias palavras. Foi só conversa. Valeu o rancho melhorado.

Depois de outros discursos, provavelmente com as mesmas ideias ouvidas no Alto Chicapa, as consequências não se fizeram esperar… o MPLA e a FNLA começaram a aparecer junto à fronteira com um elevado potencial de fogo em ações traiçoeiras e muito violentas… por exemplo, no itinerário Luvuei / Lutembo, uma emboscada, causou 5 mortos e 32 feridos.

Três crianças num quartel

Apesar de tudo, no mês de Agosto de 1973 a população do quartel transformou-se para melhor com a presença das esposas do Capitão Perdigão, do Alferes Coelho, da minha e ainda de três crianças, o João Miguel, a Catarina e o João Carlos.

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Foram dias felizes, que se escoaram ligeiros como é próprio dos bons momentos e das coisas boas. A minha mulher trazia na bagagem o que me faltava, o carinho, o amor, a alegria, e a ternura.

Viver no Alto Chicapa com a família, significou viver em território africano a um ritmo calmo, onde há sempre muito para ver e fazer. A magia de África, que se fazia sentir em cada momento, levava-nos a realizar alguns passeios numa natureza diferente e debaixo de um céu em azul intenso com tonalidades violeta, típico das altitudes (estávamos a 1320 metros acima do nível do mar).

A minha vida também animou, noutra dimensão, com a presença do meu filho. Gostava de o ver a correr despreocupado por todo o lado com um ar doce e atrevido. Caía, levantava-se, sem ajudas, e raramente chorava. Os soldados chamavam-lhe “O Fufuta”, nome de um guerrilheiro.

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O Destacamento

António Cavula, era uma aldeia, a doze quilómetros do Alto Chicapa.

O mais recente destacamento da nossa companhia foi ali construído, um pouco antes da entrada Oeste da povoação e junto da picada.

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A população, influenciada pelo soba e pelas decisões do adivinhador, nunca se mostrou amistosa ou agradada com a nossa presença. Sabia-se, que tinham ligações à FNLA entre Os Mais Velhos e outros à UNITA.

O professor apesar de ser um simpatizante do MPLA, foi mais racional e estratega durante a nossa estadia. Aceitava a nossa presença, interagia e ansiava pelas benfeitorias, que nos propusemos realizar.

Durante meses, construíram-se casas, fizeram-se obras de manutenção e recuperou-se o abastecimento de água.

Contra a vontade do adivinho ou “tchimbanda”, o enfermeiro Luís e o Dr. Vilaverde juntaram-se à população para ajudarem no controlo de doenças e de algumas mazelas existentes.

A presença do Capelão Bernardo, também não foi bem aceite.

Meses depois, a nossa missão estava terminada. Os resultados estavam à vista, casas novas entre outras melhoradas, caminhos restaurados, o depósito de água a funcionar e a escola com as novas infraestruturas.

A operação Castor, com a elite dos militares portugueses, atuou sob a ordem “Rapidamente e em força em cima de Savimbi”. Foi devastadora. Com bombas de napalm e de fosforo queimaram as sementeiras e destruíram com químicos os terrenos usados para cultivo. Os acampamentos da UNITA, que eram conhecidos e consentidos pelas autoridades portuguesas, foram atacados e arrasados em conjunto com muitas mortes e guerrilheiros em fuga… mas o principal objetivo era a aniquilação da Direção.

Savimbi, avisado por um madeireiro das intenções do novo comando da ZML, acabou por escapar para a Zâmbia.

Em simultâneo com o desenrolar da Operação Castor, o “meu cuidador” teve a arte e o engenho de me alertar de imediato. A retaliação iria surgir de várias formas na nossa área e a qualquer momento, com ataques á tropa portuguesa e, na região, às aldeias hostis à UNITA. Acrescentou: - A norte, descarregaram um barco com muito material bélico, incluindo tanques de combate… presume-se, que o material veio da União Soviética e que foi entregue ao MPLA.

Como era expetável, entre Dezembro de 1973 e Janeiro de 1974, a UNITA, sem aviso prévio, primeiro ataca violentamente as tropas portuguesas, provocando muitas mortes, e de seguida as populações que eram mais hostis, como por exemplo, a destruição da localidade de Sarieza no Bié e o corte de 36 cabeças, de homens, mulheres e crianças, na população de Sautar a cerca de 60 quilómetros do Alto Chicapa.

Corria o mês de Janeiro de 1974… quinta-feira… um dia que não consigo precisar… recebo, em mão, uma mensagem escrita num pedaço de cartão “o destacamento precisa de mais tropa, olhar a zona sul durante a noite, precisamos de falar”.

No próprio dia, ainda consegui falar com o primo do professor (tinha as funções de monitor na escola).

Quando cheguei, saudou-me meio atrapalhado. Pediu desculpa pelo saco na entrada. Estou de saída para o Cucumbi.

-Já? Hoje?

- Parto antes do dia nascer. Vou estar uns dias com a minha família.

- Estou autorizado a fechar a escola… foi o Chefe do Posto.

- Pareces abatido!

- Estou assustado! É melhor falarmos longe daqui… preferia no acesso da água ao depósito... importa-se, que vá à frente?

Ao longo da conduta de água, na zona desabitada… perguntou: Entendeu a mensagem?

- Sim, talvez… pelo menos vou aumentar a segurança a sul… se puderes acrescentar mais alguma informação, “fico em dívida…”!

- Esta semana, chegaram dois (?) guerrilheiros da UNITA para viver com a família. Estão desarmados, mas não acredite. Enterraram as armas à entrada da aldeia.

- Apesar de andarem durante todo o dia por fora, estão bem informados sobre os vossos movimentos na aldeia e no acampamento.

- Consta que pertencem a um grupo de mais sete guerrilheiros, que ainda estão a caminho de António Cavula, também para visitar familiares.

- É normal… haver tantos guerrilheiros com familiares na aldeia?

- Conta-me o que sabes!

- Não posso falar! Se o soba desconfia, amanhã estou morto.

- Os Mais Velhos não aprovaram as visitas.

- Olha! Como eu não consigo falar com os Mais Velhos, vamos combinar… hoje saio um pouco mais cedo para o quartel. Apanho-te na picada, longe do soba e da aldeia. Depois, vou deixar-te a meio caminho do Cucumbi, mas pelo caminho vais fazer o favor de me contar tudo o que sabes e eu prometo nunca falar no teu nome… concordas?

- Então? Como vai ser?

- Apareço na picada, onde há mais areia.

Quando subiu para o Unimog… de imediato agradeci a atitude e afirmei: - Nunca vou falar no teu nome.

- A mensagem não é minha…

- Eu sei quem enviou, não te preocupes… fala!

- Só sei o que está ser preparado com a condescendência do soba e sob o pretexto de uma visita a familiares… mas fala-se, que vão atacar, de surpresa, as vossas instalações, talvez no sábado, dia da Lua Escura, antes do dia nascer e enquanto estiverem a dormir. Se as sentinelas estiverem desatentas, vai haver mortos e feridos. A seguir às flagelações o grupo disperso junta-se na picada para montar uma emboscada.

- Agora, que já sabe tudo, o que sei, espero, que cumpra a sua palavra… quero ficar no cruzamento das picadas.

- Ficas longe do Cucumbi e é quase noite! Não é perigoso?

- Assim é melhor, ninguém nos vê. Não se preocupe…tenho autorização para circular, família no caminho e uma arma para me defender.

- Obrigado… és um homem… grande!

Tive uma noite em claro, cheia de pensamentos e de emoções, mesmo depois da conversa com o Furriel Marques, que me garantiu duas viaturas, uma Berliet e um Unimog, para o nosso regresso durante a manhã… à tarde o Unimog era preciso para uma recolha na mata.

No destacamento, sem que alguém se apercebesse, falei com os furriéis Santos, Gomes e Canossa sobre o regresso ao quartel.

Abordei superficialmente:

- A situação dos guerrilheiros, que vinham a caminho para visitar familiares;

- As benfeitorias terminadas há semanas.

Desconhecemos a verdadeira intenção dos visitantes e como não temos nada de nosso aqui, a prudência diz-me que é o momento certo para partirmos… antes que alguém se aleije ou fique entregue à sua sorte.

Portanto, vamos agir com naturalidade… deixar, que todos terminem o pequeno-almoço e, como é o costume, entregar aos miúdos o café com leite e o pão para levarem para a cubata.

Quando o destacamento estiver livre de estranhos falem com os vossos. Digam-lhes apenas, que vamos regressar ao quartel e que ninguém está autorizado a sair daqui.

Quando os soldados souberam que íamos regressar, a azáfama instalou-se… antes das nove horas os pertences individuais já estavam nos sacos e os apetrechos empilhados na Berliet.

- Alferes, como é agora

- Diz, Vieira!

- Tenho tudo arrumado… posso ir despedir-me da namorada? Sou rápido!

- É preciso calma! Oiçam novamente… ninguém sai daqui para despedidas na aldeia ou noutro lugar qualquer!

- Mas alferes ….

- É uma ordem, depois falamos no quartel!

- Furriel! - Furriel Gomes, meta aí uma cunha.

- Parece-me, que não ouviste bem!

- Não olhes assim para mim… não me metes medo… se alguém sai, vai tudo “cu’caralho”… perceberam!?

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Chegámos ao quartel antes da hora de almoço, depois de uma viagem rápida e silenciosa.

Operação Perseguição

À noite, quando o comandante de companhia chegou de uma reunião com a OPVDCA / DGS no Cacolo, transmiti-lhe o que estava a acontecer na aldeia e a flagelação que, eventualmente, estaria preparada para o destacamento. Ficou muito desorientado com as informações e furioso pela nossa saída, que, diga-se, já estava combinada para aquele fim-de-semana.

Quando a vida não corria de feição ao capitão Perdigão, o indesejável companheiro de muitos, destilava ódio, castigava e, mais tarde ou mais cedo, o seu caráter ainda desencadeava uma vingança.

Apesar de estarmos a viver na mesma casa, nessa noite ouvi os maiores desaforos e a segunda ameaça de cinco dias de prisão, que voltei a recusar, por achar, que era um erro. Desta vez ultrapassou todos os limites na presença das senhoras e do meu filho… hoje, nada disto tem importância na minha vida, mas foi uma experiencia única e humilhante para um jovem com a personalidade em formação.

Por impulso, no dia seguinte, ao nascer do dia, o desorientado capitão dirigiu-se a António Cavula.

A imprudência, que substituiu o planeamento e a estratégia, podia ter sido fatal. Arrastou, consigo, alguns camaradas da sua confiança e outros… mais candidatos a heróis.

Com sorte, não houve a tal emboscada na picada, mas acabaram por ser recebidos a rajadas de kalashnikov.

Felizmente, regressaram ao quartel sem qualquer ferimento, mas muito “desasados”.

Salvaguardando a sua ambição de uma carreira militar e a patente… se ao respeito, entre camaradas, e à confiança, com quem se convivia diariamente, lhe juntasse o planeamento, a estratégia, a experiencia de quem andava semanalmente na mata e uma equipa musculada, aqueles indivíduos teriam sido apanhados à mão, naquele sábado.

O meu avô costumava dizer: Se quiseres conhecer alguém, dá-lhe poder.

Acabei por ser o “bombo” daquela frustração… e o motivo da inevitável vingança com mais um costumeiro castigo.

Mandou-me, escolher 10 homens, metade do grupo de combate e sair Domingo de manhã para a área de flagelação, durante quatro dias.

Parti com 10 voluntários, os do costume, pessoal fixe, e um cão. Fomos, sem euforias, para uma zona de mata, que eu conhecia muito bem e onde me sentia confortável… gostava daquela liberdade. Sem grande pressão procurámos vestígios, que confirmassem a retirada ou a presença dos guerrilheiros na região… não foi preciso procurar muito.

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Mesmo assim, como o contacto com os guerrilheiros poderia acontecer em qualquer momento, ajustei às circunstâncias o que aprendi com o grupo catanguês… principalmente a disciplina e o silêncio.

Também, para ajudar à nossa segurança, embora contra a vontade do camarada Hamilton, mandei silenciar, até ao último dia, a ligações via rádio.

No meu relatório, da operação perseguição, escrevi, que só havia, para assinalar, um rasto de sete indivíduos ao longo da picada, na direção da povoação de Cazoa. As marcas do calçado diverso e de botas eram evidentes.

Acrescentei:

- O ambiente na aldeia está calmo apesar de haver uma divisão de opiniões sobre os acontecimentos.

- Na versão da população, que gostava da nossa presença, os sete guerrilheiros, que chegaram no sábado vieram para fazer (maka) confusão. Os dois elementos desarmados, que já estavam na aldeia, há alguns dias, fugiram na direção do Dala quando ouviram os primeiros tiros.

- Na versão do soba, os guerrilheiros tinham vindo para visitar os familiares e ver as melhorias na sanzala.

- Numa terceira versão, a da população mais próxima dos Mais Velhos, dizem que estava tudo combinado para acontecer sangue no destacamento. Os chefes estavam instalados na aldeia há algum tempo. Do grupo, de nove guerrilheiros da UNITA, só cinco avançaram contra os do quartel. Depois dos tiros, dispersaram… são todos de povoações próximas do Dala, Ponte do Cassai e Cazoa.

Ao fim de tantos anos, ainda não consigo esquecer estes acontecimentos e a atitude miserável do soba. Depois de tantos sacrifícios para deixarmos a aldeia restaurada, com bons acessos, água potável e uma escola nova… merecíamos melhor.

Apesar de tudo, a todos devo muito… para o professor e o primo, não me canso de enviar a minha eterna gratidão.

A minha família regressa a Portugal

Depois das mudanças na ZML, dos últimos acontecimentos no destacamento e do ressurgir da guerrilha na região às mãos de uma UNITA transformada, a minha família regressa a Portugal.

As retaliações do movimento de Savimbi, que reuniu todo o seu arsenal militar contra posições portuguesas, eram indiscriminadamente mortíferas, como por exemplo o ataque em Dueja e Kuete, onde matam 19 militares, queimam sete viaturas, recolhem material de guerra e de comunicação… um dos mais violentos ataques de que não havia memória.

Quis o destino, que o avião, que nos levaria do Alto Chicapa a Henrique de Carvalho, fosse abatido antes de chegar… logo após a saída da localidade do Lumege.

Sem transporte, para chegarmos ao voo de ligação entre Henrique de Carvalho e Luanda, valeu-nos a amabilidade do Sr. Capela, o comerciante local, que nos facilitou o aluguer do seu idoso Land-Rover de caixa aberta e a disponibilidade do comandante Perdigão para emprestar um bidão com 100 litros de gasolina.

Tinha informações e provas de que a guerra andava por ali, cada vez mais ativa e com grupos de guerrilheiros nas proximidades, prontos a matar.

Achei, mesmo assim, que alguma informalidade na partida e muita concentração no percurso seriam suficientes.

Aos camaradas Alberto, Teixeira e Canelas, que se prontificaram a ajudar-me durante a viagem, solicitei-lhes o máximo sigilo… até com os amigos.

Saímos, ao anoitecer. Embora armados até aos dentes, o nervoso esteve sempre presente num ambiente noturno e misterioso com neblinas muito baixas, que pareciam encomendadas.

O nevoeiro denso acabou por ser a nossa maior dificuldade nas picadas de terra batida…quando se adivinhava um buraco já lá estava outro.

Naquela época, sem luz nas localidades, sem mapas, placas de referência, marcações e um nevoeiro intenso, o instinto era o nosso GPS. Como a estrada de alcatrão tardava, parei para reconhecer a zona. Quando saí daquela viatura, estremeci e não queria acreditar… tinha acabado de atravessar a estrada de alcatrão… na minha frente havia um imenso abismo.

Ultrapassadas as primeiras complicações, a bênção do nevoeiro, que camuflou todo o nosso trajeto, em tempos de guerra, foi a ajuda inesperada para um regresso seguro, da minha mulher e do meu filho, a Lisboa.

Fim da Comissão

Quando se entrou no período próximo do fim da comissão o pessoal começou a acreditar, que ia chegar inteiro ao “Puto”.

Começava a procura de recordações… uns panos estampados (quitenges), imagens esculpidas em madeira, garrafas de whisky, tabaco… e o grande frenesim dos caixotes, para o Silva, o nosso carpinteiro, os fazer.

Porem, o final não ia ser fácil. As últimas informações do meu “cuidador”, em Março (1974), já deixavam entender um provável adiamento da nossa rendição devido à instabilidade política em Portugal, confirmada mais tarde com a revolução de 25 de Abril e pela mudança de regime na governação portuguesa.

Num sítio longe dos centros de decisão e com comunicações limitadas, obrigou muitos de nós a repensarem o futuro das suas vidas.

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Em fins de Maio, chegou o dia, o grande dia da rendição e de rumar até Luanda.

Parecia um sonho tornado realidade… estávamos vivos, mais velhos e cansados.

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No meu imaginário já revia Luanda… contava com um pequeno e merecido descanso… a tal cidade que ainda fervia de vida, com as suas praias, os restaurantes da ilha, os cinemas ao ar livre, como o Miramar, e um ambiente frenético, onde todos se alheavam completamente, que a umas centenas de quilómetros havia ainda uma luta armada e que estavam a germinar os primeiros focos de uma guerra civil.

Sá da Bandeira

Com alguma surpresa, a minha “missão” e a do furriel Coimbra, em Angola, ainda não estava terminada.

Fomos eleitos para percorrer em velhas camionetas de carga uns adicionais e longos 2.000 quilómetros (ir e vir) e entregar no Regimento de Infantaria, em Sá da Bandeira, os soldados do contingente de Angola.

Sá da Bandeira era uma cidade situada num planalto, que me impressionou muito. A zona antiga, que visitei à noite, estendia-se desde o Palácio do Governador e do Banco de Angola até ao quartel, passando pela câmara municipal, a igreja da Sé, o parque infantil (com um zoo em miniatura) e um jardim, com lagos onde ao anoitecer se passeava para lá e para cá.

Havia muita população de brancos por toda a cidade.

Uma cidade quase perfeita para a época com um Liceu Nacional, o de Diogo Cão, a Escola Industrial e Comercial, o Grande Hotel da Huíla ao estilo colonial e um Hospital.

O parque da Senhora do Monte, com jardins, um lago, que era mais uma piscina ou praia, um casino, onde assisti a um espetáculo, numa noite de riso, com o madeirense Max e a sua Mula da Cooperativa. Na encosta vizinha, lá estava a Capelinha da Senhora do Monte.

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O Daniel Velosa, um camarada de armas do contingente angolano, a residir na cidade, foi o meu guia, o melhor de sempre... num cansado VW carocha alugado "voámos" por tudo o que era aldeias, arredores e por rios sem pontes... a Humpata, a fenda da Tundavala, com 700 metros de fundura, a Serra da Leba a 1800 metros acima do nível do mar, com a sua estrada em serpente...

Cheira bem, cheira a Lisboa

Com a nossa chegada de Sá da Bandeira, a Companhia ficou completa e reunida no Campo Militar do Grafanil em Luanda.

No dia 05 de Junho meteram-nos num avião, fretado à TAP.

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Regressámos a Lisboa.

O comandante com outros camaradas, ainda ficaram mais uns dias para tratar da chamada liquidatária da Companhia e do fecho das contas nos Serviços de Contabilidade e Administração.

Durante a viagem, meditei sobre os dois anos e meio de vida militar, da estranha guerra de guerrilhas em Angola, o tempo perdido, os locais por onde andei e a liberdade, que sentia nas matas.

Naquele avião, terminava uma guerra e começava outra… para outros ritmos e outros hábitos… procurar trabalho, cumprir horários e ganhar a minha independência.

Ficaram as memórias dos momentos de felicidade a contrastarem com as passagens negras onde, mesmo assim, houve uma saudável, sincera e desinteressada colaboração… momentos, que enriqueceram as nossas vidas e nos deram mais força para continuar.

Ao sobrevoar Portugal, ainda me arrepiei quando se cantou até chegarmos à pista de aterragem, em Figo Maduro / Lisboa, a canção "Cheira bem, cheira a Lisboa...".

Quando saí do quartel RALIS, tinha terminado a minha odisseia.

Já à civil, tudo parecia ainda um sonho… estar em Lisboa, o cheiro a mar, o brilho do sol, o Verão, os jornais, os cinemas…

Passados estes anos, ainda tenho consciência, que, quando regressei, não era o mesmo… a vida deu-me luta, obrigou-me a desafios e aprendi a saber o que não quero.

Restam 150 euros do Império… e não só

Termino estes quatro capítulos entre sentimentos de saudade e revolta, contrastando com a minha vontade de voltar atrás, viajar no tempo, numa espécie de regresso ao passado, para poder abraçar os que comigo partilharam os momentos em que estivemos envolvidos, maioritariamente como voluntários à força.

Falem, contem ou escrevam sobre o ocorrido, porque só assim se mantêm vivas as memórias de um tempo que não pode ser ocultado nem, sobretudo, ser negada, a parte dos melhores anos da nossa juventude.

Estarei a ser injusto? Afinal, ainda me restam do Império 150 euros anuais, antes de impostos!

Fico com a convicção de que me esforcei por este objetivo a que me propus, reconhecendo que ainda fica muito por dizer. Nada se esgotou aqui, muitas páginas minhas e de outros camaradas ficarão por escrever.

Merecem uma referência particular os amigos, os verdadeiros e os leais camaradas, e a desinteressada amizade, que ainda hoje nos une e resiste com a mesma vivacidade ao tempo e à distância.

Numa Angola “profunda”, muito no interior, não esqueço aquele povo bondoso e arredado dos conflitos de interesses dos movimentos armados, homens, muitas mulheres e ainda mais crianças, que nos receberam tão bem.

Ainda há poucos meses, ao telefone, um leitor e amigo dos tempos do quartel em Chaves, mas de outra guerra, Moçambique, me dizia: Ainda recordo com admiração a minha lavadeira, que me acompanhou todo o tempo no mato e em duas regiões distintas… foi preciosa a cuidar e a defender, conheci a sua cultura e os seus costumes, como ninguém.

É verdade, África tem uma magia inexplicável… também sobre mim… foram os cheiros, os batuques, os sons (até o trabalhar do gerador à noite), a simplicidade do povo quioco, o soar do clarim do Virgílio, o barulho das hélices do avião, que trazia as notícias da família… que aos poucos se entranharam e me acompanham durante todos estes anos, gerando um sentimento único… saudade.

Sem querer esquecer ninguém, faço questão de recordar:

- O excesso de rigor a que estivemos sujeitos, com a desculpa da manutenção da disciplina… não era preciso tanto, não eramos um bando de anormais, nem uns fora‑da‑lei;

- As carecadas dos furriéis… a luta improvável;

- Quando libertei um camarada amarrado a um eucalipto e recebi de volta a primeira ameaça de 5 dias de prisão;

- O Alferes Coelho… sem emoções;

- O Primeiro-sargento Ledo Teixeira, uma agradável presença… lembrava-me o meu pai;

- Os “meus” Furriéis, o Alfredo Gomes, o José Canossa e o José Santos (o saudoso menino branco) … não podia ter tido melhor companhia;

- Os camaradas sinceros, do dia-a-dia, que nunca me abandonaram na mata e a quem nunca ouvi um não, o Nuno Pereira, o Hamilton Castro (transmissões), o José Sousa, o Luís Carvalho (enfermeiro), o José Costa, o Daniel Velosa, o Augusto Teixeira, o Fernando Freitas, o Fernando Conceição, o Mário Vieira, o António Alves, o António Alberto, o António Pinheiro, o José Quirino, o Ilídio Canela, o José Novo, o Cassiano Gonçalves e mais seis bons companheiros do contingente angolano, que omito os nomes, intencionalmente;

- Do meu cuidador, um beirão vaidoso, um bom amigo dos velhos tempos (falecido), que se despiu de preconceitos, na sua guerra de gabinete e de papéis, de quem eu beneficiei da sua confiança e da boa vontade, com ajudas e avisos;

- O Manuel Carvalho (enfermeiro) e a enfermaria, as paixões do meu cão Buda;

- As estafadas viaturas e os milagres que aconteciam na equipa do Furriel Marques… só aquele radiador reconstruido à mão, bastava para acreditar;

- O Furriel Victor, que, com muito pouco, fazia muito para o nosso bem-estar alimentar… aquele pão grande, que, quando sobrava, levava para a mata, ainda hoje lhe sinto o sabor… obrigado;

- A equipa de transmissões sempre atenta aos nossos movimentos no mato e o Furriel Chagas, aquele bom gigante cuja imagem de um não guerrilheiro não pretendo esquecer;

- O Alferes Boavida, um durão… a oferecer “tareias”, mas no fim até dava a camisa;

- O Alferes Monteiro, que nos intervalos da guerra era um trabalhador incansável nas obras… acabou incompreendido, desprezado e atirado para longe… ainda hoje desconheço o porquê de tanta intolerância; e

- Finalmente… todos… que souberam estar ou deixaram as suficientes boas recordações para, agora, passados tantos anos, lembrarmos a saudável, sincera e desinteressada colaboração vivida em momentos de precariedade e de amizade desinteressada.

A todos, a Nzambi e aos Espíritos da mata… devo muito!

Carlos Alberto Santos

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A viagem dos grandes choques de realidade para milhares de voluntários à força

Alto Chicapa, 23.07.20

Poucos tinham visto um Boeing 707 (04-02-1972 / Figo Maduro, Lisboa)

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Eram 23 horas, de uma noite muito fria, escura e… triste. Estávamos no Aeroporto em Lisboa, numa aerogare da força aérea. Entre momentos de boa camaradagem, de espanto e de alguma descontração, fizemos um razoável percurso a pé, até ao avião.

Poucos tinham visto um avião de tão perto. Era todo branco com uma risca azul ao meio e uma cruz latina vermelha no bojo, junto às janelas, entre as asas e na porta de acesso. Organizados, subimos as escadas e entrámos deslumbrados.

Já no ar, com o espetáculo de uma Lisboa à noite a perder-se de vista, passou-se, rapidamente, para o Oceano Atlântico num ambiente de nuvens muito escuras.

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De madrugada, no meio de uma grande tempestade tropical, o avião era sacudido grosseiramente entre grandes deslocações para baixo e para cima. Lá fora, via-se perfeitamente como se fosse dia e as nuvens em baixo eram rasgadas frequentemente por enormes clarões.

Para me proteger da luz dos relâmpagos, ajeitei-me na cadeira e adormeci, praticamente inconsciente, como se o vazio se tivesse apoderado do meu espírito fazendo-me esquecer aquela agonia familiar da partida para a guerra.

Despertei ao som da voz de um militar da Força Aérea Portuguesa, “a nossa hospedeira de bordo”, anunciando que o pequeno-almoço ia ser servido.

Passavam trinta minutos das seis da manhã.

Quando foi servido o pequeno-almoço, à base de fiambre, pão, manteiga, croissant, café com leite, compota, geleia e mais qualquer coisa com ovo, estávamos muito perto de Angola, já se via o oceano muito bem e a altitude era mais reduzida, sobrevoávamos a orla marítima, formada por retalhos onde o verde da vegetação contrastava com uma terra avermelhada, e os arredores de Luanda com uma extensa zona de bairros pobres e, mais adiante, junto ao aeroporto, a cidade onde já havia alguns edifícios modernos.

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Uma madrugada calma

À hora em que a natureza começava a mostrar-se com toda a sua exuberância, a costa africana ainda estava envolta pelo cacimbo do amanhecer. O verde, o calor e a terra encarniçada misturavam-se entre capim, árvores e neblinas.

O sol nascia desde a traseira do avião boeing 707 dos TAM (Transportes Aéreos Militares).

Tudo, ou quase tudo, parecia ser tão irreal, um grande rio a vencer o oceano, a floresta, uma pequena aldeia, e algumas casas isoladas cobertas de vegetação em clareiras rodeadas de frondosas árvores.

Fiquei feliz por ter desfrutado, assim, dos primeiros cenários naturais de Angola.

Semanas depois era o percurso até... à nobreza dos animais nas chanas junto à água e ao rugido cavernoso do leão, à noite. As plantas que curam ou fortalecem e o secretismo dos feitiços. A jovens nativas, frutos silvestre, corpos de gazela, olhos luzindo promessas de desejo nos seios… nuas numa esteira em noite escura, aiué, aiué... os batuques, entre avisos de guerra, e as fogueiras com as silhuetas e as sombras que se deleitam entre danças. Foram muitos meses, a viver, em plena selva, com dois panos de tenda a servir de teto… num choque indescritível, que ainda arrepia, entre medo, respeito e fascínio.

Foi a dureza da vida e aquela imensidão africana que me permitem, hoje, olhar a natureza de outra maneira, moldar a minha mentalidade e a libertar o meu espírito de comportamentos mesquinhos.

A integração, no espírito africano.

O dia começava cedo na cidade de Luanda, o orgulho do Império, num trabalho lânguido misturado com o lazer e a prática corrente da sesta.

Num intenso calor carregado de humidade e de mosquitos, a vida parecia preguiçosa, embora as alienadas gentes, idas do “Puto”, antes da guerra, invadissem tudo, abanando a “árvore das patacas” num saque que parecia urgente. Os nascidos na terra, esses olhavam-se incrédulos e confusos, perguntando frequentemente, porquê tanto trabalho.

Bem à portuguesa, os chamados colonos tinham filhos, casavam-se, eram felizes na terra de adoção. Mantinham ali o seu dinheiro e investiam na vida profissional e material local como um cidadão na sua terra natal.

Havia gente de toda a espécie, aqueles que tinham trocado toda a riqueza, na santa terrinha, por uma carta de chamada, documento original na diplomacia portuguesa, imprescindível à imigração dos sonhadores, os portugueses de primeira, que se achavam altos funcionários cheios de importância e os intelectuais de esquerda, tacitamente contra o colonialismo, mas sem abdicarem das mordomias e de tudo o que era bom.

No mundo urbano central, quase restrito aos brancos, novos-ricos, perdidos em vaidades e rodeados de criados, a guerra no mato, impiedosa, noticiada diariamente, era ignorada… até um anormal movimento de helicópteros com feridos, sobre a cidade, não conseguia agoirar um fim de tarde de lazer ou uma revista local acabada de sair, cheia de fotografias de bailes, festas sociais, moda e automóveis do tipo americano. Ninguém se apercebia do fim eminente.

Na Mutamba apanhei um “machimbombo”.

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Fui dar uma volta pela cidade. Estava deserta. O comércio fechado, as ruas vazias, os táxis parados, sinaleiros sem trânsito, dormitando tranquilamente até que a cidade volte a si… é que das 12h00 às 15h00, Luanda defende-se do calor. Fecham as farmácias, as barbearias, as lojas, as repartições públicas, os consultórios e até os quiosques. É um ato de hibernação regulado pelos sons no forte de S. Miguel que anuncia as 13h00, o momento da passagem da mesa do almoço para o cadeirão de verga onde se lê o jornal e se dorme… uma sesta.

A minha hora do almoço foi passada, estrategicamente, na estrada de Catete junto ao Jumbo.

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Era o local escolhido para o descanso do motorista ou… do tropa que em 1963 tinha sido retirado de Macedo de Cavaleiros para ir defender Cabinda.

A nossa aproximação começou com um... és um recém-chegado a África!

- Sim, sou tropa, cheguei de Lisboa, vou para o Leste.

- Vais precisar de tempo para aprenderes, o que esta terra tem para nos ensinar.

- Nunca esqueças! Não andes mais depressa do que o teu anjo-da-guarda puder voar… coisas de África… quando te passarem os fulgores da juventude e perceberes que o homem não é omnipotente… vais acreditar!

- Na guerra, que acontece nas terras para onde vais, mata-se e morre-se… quando regressares, que não seja entre cal e chumbo ou enfermo da violência psicológica e da solidão ou com rancor pelos anos que te roubaram, mas com o espírito encantado, vagueando perdido, saudoso e prisioneiro dos horizontes míticos... só assim conseguirás a tua própria paz!

O acordar do povo foi rápido e o “machimbombo”, uma comprida camioneta, em marcha lenta, já ia cheio… pretos, brancos e mulatos.

O entardecer rápido.

Agitava cafés, cervejarias e esplanadas enquanto o sol se envolvia num largo turbante vermelho para um número final do seu belo espetáculo de todos os dias… o pôr-do-sol.

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Havia, sempre, muita gente no centro da cidade, na Marginal, no Cais do Porto, nas Ingombotas, na Maianga, na Vila Alice, na Vila Clotilde, na Cidade Alta… a respirar um ar húmido, que tornava tudo pegajoso, e que entrava pelas narinas como um bafo inebriante e erótico, vindo das fornalhas daquele clima tropical onde o desejo fervia… sem parar.

A noite era igualmente morna e húmida entre a água calma e deslumbrante da baía de Luanda.

Os majestosos edifícios iluminados, encimados por reclames multicolores, o edifício do Banco de Angola, os andares do Banco Comercial de Angola, os grandes edifícios dos hotéis, o edifício de apartamentos da indústria do prazer, o “treme treme” (local muito frequentado por belas morenas, que tornavam tudo mais fácil e pelos militares em férias ou regressados do mato), o porto de Luanda repleto de navios e os vários bares onde havia espetáculos de variedades e de striptease de categoria duvidosa.

Luandanoite

Noite dentro, no Largo da Cervejaria Portugália…

- Qxxxxxx, tu... por aqui?

- Alferes!?

- Viemos comprar batatas!

- Batatas?

- Batatas-doces… riram-se.

- Viemos às meninas.

- E então?

- A primeira que encontrámos, disse que era a Josefa… parecia ter cinquenta anos… mostrou-nos a perna até… à… barriga, só pintelhos.

- Depois… outra e ainda outra a usar grandes óculos de sol à noite… aquele bimbo só se ria... pirou-se... e eu fiquei ali parado, a olhar os oculos escuros na noite escura… são 50 do puto por uma “mamada”!

- E... que tal?

- Meu Alferes, uma vergonha, aquele bimbo percebeu a tempo… era um travesti. Isto já é a guerra… posso morrer na merda, ficar sem pernas ou sem pila, mas não quero entrar na minha terra, esticadinho no caixão, só a arrotar a colhões de um qualquer travesti.

Havia uma outra Luanda

Nos arredores da cidade, os musseques... um mundo de gente fugida da guerra das montanhas do Norte e das planícies do Leste, iludida por uma vida melhor… esgotados nas entranhas das ruelas escuras, fedorentas, insalubres, das fogueiras queimando excrementos e das águas estagnadas, ninho de milhões de mosquitos e de incontáveis misérias.

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As inacabadas casas de madeira ou de lata não eram um mundo impenetrável para o branco, ali encontravam desejo, tesão, prazer… galope desenfreado e o gozo de fazer sexo livre em qualquer lado… entrava-se e sai-se livremente e, naturalmente, aconteciam as uniões entre as raças. Nascia a mestiçagem uma geração de gente mulata, onde as raparigas, quase irresistíveis, eram esbeltas e harmoniosas… Kuringa, uma cabrita, de cor “canela”, em meneio gingado como uma potra de raça, sorriso de marfim, corpo maduro ansiando parelha, linda, vestida de panos garridos e justos a realçar as formas esculturais do belo corpo já bronzeado, o ventre liso, os seios excitados, o “mataco”, que dança e até se insinua na cidade, marcado por calcinhas minúsculas e… tudo o resto… nem era preciso adivinhar.

Campo Militar do Grafanil.

A chegada, ao Campo Militar, em veículos de mercadorias, “gado” entre taipais, foi apenas o começo, de semanas e mais semanas… anos de um jogo mortal de guerrilha.

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3º. Grupo - zona do Cassai

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Eles

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- Alferes, isto é tudo um fingimento.

- São as casernas, que não são… são pocilgas e tendas.

- São as camas, que não são… são viveiros de percevejos e prateleiras de cimento com um cobertor.

- O vinho, que não é vinho… é banga-sumo, uma mistela.

- A capela, que não é capela… é um embondeiro… o Capitão é que a sabe toda, de mansinho desenfia-se… vai-nos enrabando de fininho… igualzinho ao meu padrasto.

Pairava no ar muita angústia e o ambiente era infeto e incaracterístico. Representava, a síntese das fragilidades da sociedade angolana, o nível intelectual dos muitos militares de gabinete, ébrios de poder... conhecidos pelos calhaus da engrenagem.

O chão vermelho da parada, onde as poucas árvores estrategicamente colocadas julgavam contrariar a fúria dos elementos, fervia aos primeiros raios solares com a intensidade de um forno crematório.

Nas noites, passadas entre percevejos, mosquitos e um silêncio de morte, os corpos escorriam suor e os pés escorregavam no chão gorduroso e húmido dos líquidos que habitualmente escorriam das latrinas cheias.

Apesar de tudo, não esquecerei os momentos de camaradagem na esplanada, com uns “conversados” camarões, a solidariedade, o humor, o desconforto físico e, em certos casos… muita revolta. Foi ali, com as minhas próprias forças… as internas e as outras, que comecei a aprender a resistir e a ultrapassar os fantasmas e os medos.

Primeiro dia da viagem para o Leste de Angola

Já era noite alta quando chegámos à cidade de Nova Lisboa (Huambo).

Não houve salvas, nem festa, nem, como em Luanda, bandos de aguerridos miúdos a receber-nos.

Num olhar rápido pelos arredores e pela estação dos comboios, vejo alguns edifícios iluminados e todas as ruas desertas.

Atiro-me para um cadeirão de verga num quarto alugado para… mais dois. Fiquei-me… sem reação… sem dar pelo tempo… a tentar recordar os muitos quilómetros percorridos (600). Queria lembrar-me de episódios, de paisagens, de cenas, de costumes, mas… só conseguia reconstituir na penumbra, da luz mortiça de uma lâmpada, a manhã calma da partida, as cubatas ao longo da esburacada estrada, o espetáculo fantasista do sol a morrer para lá das últimas palmeiras gigantes, que se viam no horizonte, os casebres pobres em silhuetas coladas sobre um chão encarnado e um céu onde se adivinhava a agonia rápida do dia.

Perto de mim, escreviam-se aerogramas e uma conversa em surdina acabou em evocações sentimentais:

- A minha senhora faz anos... que pena não haver um telefone!

Um camarada… mais "cusco"… comenta alegremente:

- Mas há mosquitos, moscas, muita merda, uma bala perdida e mais mil quilómetros, bem medidos… com o peso dos teus cornos duvido que lá chegues!

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Pálidos… pelo desconforto.

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A paisagem era desoladora e agressiva. O capim dominava a região entre a densa mata, algumas clareiras e os raros terrenos de cultura onde os braços desiguais e retorcidos dos embondeiros pareciam estar em atitudes alucinadas de quem protesta e se revolta contra o solo ingrato.

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Em algumas aldeias, junto à estrada, a população parecia ser feliz, gritavam as mulheres, as crianças, os jovens e os velhos, quando passávamos perto. Os gritos… pareciam ir de sanzala em sanzala como o som do batuque que comunicava de terra em terra, no alfabeto indecifrável daquele povo, com a notícia da chegada do “chindelo”.

Noutras, havia um silêncio imprevisto, e em contraste lá estão junto das cubatas as mesmas mulheres, homens e crianças, parados sem que os olhos se abram amistosamente, sem uma atitude de interesse, quase sem se voltarem… em desprezo. Outros estão sentados, de costas apoiadas nas paredes frágeis das cubatas, indolentes, inúteis e tristes.

Numa loja, onde se vendia de tudo, com um quadro do Bom Jesus de Braga à entrada e um velho colono sentado ao balcão a fumar e a beber cerveja… gabava-se de episódios de outros tempos, de lutas… para nós, os maçaricos, eram simplesmente irreais e impossíveis.

Quilómetros, quilómetros, quilómetros… 

A espaços uma sanzala igual a tantas outras, onde o povo aparece no caminho com saudações diferentes, uns fazem continência, outros batem no peito e as palmas, outros quase se deitam no solo e erguem as mãos numa atitude de inspiração fascista.

Passámos por pequenas povoações, postos isolados de governadores solitários, por alguns colonos portugueses… a bandeira portuguesa, entre casas de adobe e telhados de zinco.

A um soba, perguntei: - Então, como correm as coisas por aqui?

Metido no seu fato de Terça-Feira de Carnaval com botões dourados, descalço e de chapéu-de-chuva, bracejou na mímica do seu complicado idioma.

Pelo semblante, só podia estar a dizer... vai-te embora, vai para a tua terra!

Um intérprete de ocasião tenta convencer-me de um encontro amistoso... não disse nada, era só discurso.

Era o contraste de ideias, que passava a estar incluído no preço que iria, realmente pagar, para, um dia, poder voltar a Portugal.

Nos Caminhos de Ferro de Benguela, até á Vila do Luso

Inspirado nos livros de Agatha Christi e no meu imaginário esperava por umas confortáveis carruagens, um restaurante onde poderiam jantar 30 pessoas em verdadeiro luxo de espelhos e cristais, empregados aprumados de fardas bordadas a ouro, um menu de africanos… cadeirões confortáveis para a noite.

Percorri o comboio de ponta a ponta… não fiquei entusiasmado, nem acabei surpreendido.

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Passámos, dois dias em bancos de madeira, alguns longitudinais, em grandes molhos de corpos, de braços, de pernas, de armas e de porcaria… os líquidos de odor duvidoso, os restos das latas de conserva e outros detritos iam ficando espalhados pelo chão.

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Depois de breves paragens em Bela Vista, Chinguar, Silva Porto, Munhango, Cangumbe e Vila General Machado chegámos à pequena estação da Vila do Luso quando o luar já tomava conta da paisagem.

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Destacavam-se algumas casas brancas, recortes de arvoredo em ruas largas e muitos europeus… maioritariamente militares e seus familiares.

A mil trezentos e vinte metros de altitude gozava-se ali as delícias de um clima planáltico temperado e saudável.

Na povoação, de uma tranquilidade excecional, ouvia-se ainda, lá longe, como um eco, como um rugido, como um grito abafado pelo tambor e pelos cânticos do batuque, a repetir sem descanso: - Chindelo chegou… chindelo chegou…

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No restaurante Catespero, perto do Hotel Luso, finalmente uma refeição… um grande bife, batatas fritas, três ovos estrelados e vinho verde Gatão. Aí, conheci o Sr. Joaquim, um velhote, marcado pelas febres, respeitado e saudado por toda a gente… setenta e sete anos de idade e 50 anos na Universidade do Leste.

Contava:

- Era tão fácil andar pelo mato noutros tempos… andava à vontade até nos extremos da fronteira.

- Firmavam-se tratados de amizade com os sobas, deixando como permuta a bandeira das quinas.

Apesar dos prepativos para uma nova partida para a primeira noite num “quartel” no mato... entre espingardas, outras tralhas, munições... uma voz mais alta em brado de aviso irónico faz coro com o ronco do motor da Berliet… Cuidado com os leões! Não os matem todos…

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No dia seguinte, já em Sacassange… reparei na triste monotonia da paisagem.

Carlos Alberto Santos

www.cc3485.pt (Site dos Ex-Militares Companhia 3485)

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