Ordem de rotação
O último trimestre de 1972 trouxe-nos uma inesperada notícia. A ordem de rotação do comando do Batalhão 3870 para a cidade de Henrique de Carvalho (Saurimo), na Lunda.
Na sequência desta reorganização militar, em Angola, a rendição das quatro Companhias foi o movimento seguinte.
Nunca houve uma explicação para esta mudança tão repentina… do Moxico, no Leste, para o Alto Chicapa, na Lunda Sul.
Fomos dos últimos a partir, porque ainda nos restavam algumas missões… a defesa e a segurança do aquartelamento na Vila do Lucusse e o acompanhamento dos trabalhos na região de Lungué-Bungo, junto ao destacamento dos Fuzileiros Especiais nº 6… onde, uma vez por semana, via helicóptero, havia sardinhas para assar, marisco e muitas grades de cerveja.
Longe de tudo
Sem conseguir precisar, mesmo nos meus apontamentos, o verdadeiro momento do Adeus a Sacassange… fomos em velhas viaturas civis, como gado vacum entre taipais, pelo itinerário Luso, Luma-Cassai, Alto Chicapa, para terras de quiocos (tutchokwe) e minungos (tuminungu) de dialeto tchokwe.
Foi uma longa jornada de 200 km com uma pequena paragem para almoço no quartel de Luma Cassai.
Continuámos em picadas com muita areia, abandonadas ao tempo, ao capim e à invasão da densa vegetação. Atravessámos pontes em elevado estado de degradação e percorremos terras e lugares desabitados… perdidos no mapa… restou a esperança, a interajuda e a nossa camaradagem.
Fomos render a Companhia 2697 do Batalhão 2911, no Alto Chicapa… novamente sozinhos entre nativos e agora mais longe de tudo, a mais de 8 horas de viagem nas nossas viaturas militares, condicionados pelas avarias e chuvas… 240 km separavam-nos da pequena cidade de Henrique de Carvalho e do comando do Batalhão.
Embora mais experientes, estávamos numa terra hostil… entre muitos residentes simpatizantes ou dissidentes da FNLA.
No entanto, tínhamos a nosso favor: - O enfraquecimento geral da guerrilha, a fuga dos seus líderes, as desavenças internas e as diferenças ideológicas entre os movimentos de libertação.
Posto administrativo do Alto Chicapa
Naquele Alto Chicapa, à época (1972), além de nós, militares, maioritariamente milicianos, havia um administrador de posto, ainda muito jovem “de borbulhas na cara”, os Cipaios, a chamada polícia da Administração de Posto, recrutados entre a população local, os funcionários da OPDVCA / DGS (Pide), que raramente se viam e ainda dois comerciantes, um o Sr. Capela… inesquecível… o frango picante e a grade de cervejas ao lado, no banco.
Em torno deste núcleo social havia uma pequena aldeia junto ao posto. No lado oposto era a aldeia do grupo 305 e 306 de GES (Grupo Especial) e da família… foi a tentativa falhada de criar a tropa profissional local. Não tinham preparação militar, estavam mal equipados e até usavam camuflados rotos ou outra roupa diversa. Ocasionalmente, também apareciam na aldeia alguns “guerrilheiros” de um grupo de flechas (militares, que atuavam sob o comando da Pide / DGS).
O posto administrativo estava estrategicamente situado entre as aldeias… Samunge, Samuchima, Cambatxilonda, António Cavula, Nandonge, Muaxiteca, Muachiava, Muambumba e Samuange.
Finalmente os Sobas… personagens nem sempre credíveis à época, independentemente do partido que tomavam… eram os intermediários entre os seus na sanzala e a administração do posto.
A nossa vida no Alto Chicapa melhorou substancialmente, com mais meios e melhores instalações, apesar do enorme isolamento. Estávamos, a 1240 metros acima do nível do mar, rodeados por muito verde, bastante água e com amplos horizontes. Os grupos de combate, tinham a missão de executar alguns trabalhos de manutenção e de melhoramentos no quartel, obras em infraestruturas de apoio às populações, patrulhas e operações regulares alternadas de 5 a 6 dias na mata ou a permanência num destacamento.
Um pequeno avião mono motor abastecia-nos semanalmente de correio e de alimentos, os chamados frescos. Os restantes géneros chegavam com outra cadência numa viatura civil ou nas nossas viaturas militares.
Naquela região com clima de planalto, o anoitecer acontecia prematuro e rápido e em simultâneo com o despertar de um mundo incrível de vida animal numa sinfonia, com pronuncio de segurança, debaixo de um vasto manto escuro manchado de estrelas... de longe, chegavam os mais variados ruídos da selva.
Sempre que podia, caminhava à noite entre estes momentos, que me proporcionavam prazer e equilíbrio… numa terapia imperdível, que juntava aos ensinamentos da guerrilha… nunca passar, duas vezes, à mesma hora, no mesmo local.
Duas portas de armas
O aquartelamento era funcional, com duas portas de armas, uma virada a leste e a outra a oeste num amplo espaço, geralmente muito limpo.
Do lado esquerdo, havia uma casa com os quartos dos dois sargentos do quadro, o bar, um acanhado posto de transmissões, um forno de padeiro, a casa com os quartos dos oficiais, a casa das refeições dos graduados, uma cozinha rudimentar a precisar de grandes melhorias, o refeitório dos soldados, que merecia ter mais conforto do que apenas os toscos bancos / mesa e as gordurosas chapas de zinco a servir de teto, o depósito dos géneros alimentares com frigoríficos a funcionar a petróleo, uma cantina, uma caserna pré-fabricada, dormitório dos soldados, uma casa coberta de colmo que servia para trabalhos diversos, um gerador de eletricidade, a oficina auto e o parque das viaturas, um paiol carregado de munições e explosivos… de má memória para os camaradas que lá estiveram presos… perigoso pela irresponsabilidade na decisão de usar este local para castigo… os depósitos de gasolina para os helicópteros, um posto de enfermagem, sempre muito movimentado e um posto de vigia, bem lá no alto.
No lado direito, havia um outro posto de vigia de amplos horizontes, diametralmente oposto ao primeiro, a secretaria, um pré-fabricado, dormitório dos furriéis, outro pré-fabricado, dormitório de soldados e as casas de banho.
Para além destes equipamentos, ainda tínhamos uma pista, em terra batida, para pequenos aviões, um campo de futebol, um campo de voleibol, uma plantação de abacaxis e, um pouco mais tarde, uma piscina.
Fora do quartel havia pormenores a lembrar a época colonial dos anos 30 / 50, como a antiga casa do administrador de posto, uma construção com planta quadrada e uma boa área coberta, que a protegia das fortes chuvadas ou proporcionava um bom local de permanência, nas horas de calor. Nas traseiras havia um grande cercado com duas frondosas mangueiras.
Naquela época, em pleno interior de África, sem estradas ou outros meios de comunicação, o local era um oásis de luxo, que muito poucos tiveram oportunidade de usufruir.
A paz inesperada
Apesar de a região ser muito diferente da anterior, continuámos numa paz inesperada, devida ao trabalho desenvolvido, no segundo trimestre de 1972, pela operação Rojão IH e pelo êxito do agrupamento de Comandos, Raio (companhias 31, 33 e 37), na destruição dos movimentos de libertação. A FNLA depois de muito castigada enfrentou uma amotinação na base de Kinkuso e uma dura intervenção das tropas do Zaire, o MPLA, que também não foi poupado nos confrontos, envolveu-se em revoltas internas e a UNITA, mantida fora das hostilidades, pelo pacto de não-agressão, que lhe foi oferecido com a garantia (cínica) do controlo do Leste de Angola.
A desorganização dos movimentos de libertação agravou-se, ainda mais, devido às divergências entre os seus líderes.
Apesar de tudo, as nossas operações de patrulha e de reconhecimento continuaram com a mesma seriedade e cadência de 5 ou 6 dias / grupo de combate.
Cassai
Nos dias que antecediam uma qualquer operação, tinha por hábito reler os manuscritos do meu “cuidador”, ler a documentação oficial, que só raras vezes estava disponível e estudar o itinerário numa carta topográfica.
Na normal atividade de reconhecimento de zonas remotas na mata, desta vez, foram programados seis dias para a operação “Pato 7212”.
Foi-me proposto:
- Patrulhamento ofensivo, de identificação, deteção ou divulgação de grupos IN e destruição dos seus meios de vida.
- Largada na picada, Alto Chicapa / Luma-Cassai, junto ao rio Cassai.
- Recolha na picada, Alto Chicapa / Cuango, junto ao rio Cuango.
- Reconhecimento da margem esquerda do rio Cassai até à sua nascente e margem direita do rio Cuango desde a sua nascente até ao cruzamento com a picada (ponto de recolha).
- Permanência desde o dia 04 de Dezembro de 1972, antes do sol nascer, até ao dia 09.
- Grupo de combate com 17 homens, armas G3 e 100 munições / homem, granadas defensivas e três carregadores nativos da aldeia de Samuge.
- Um percurso de 46 quilómetros (ponto de largada / ponto de recolha).
Depois do jantar, fui questionado sobre a saída de seis dias para a região do rio Cassai… até um condutor abordou a deslocação: – Então alferes, amanhã lá vão dar um passeio até ao Cassai!
Falei com o comandante da companhia sobre a confidencialidade… garantiu-me: - Ninguém conhece a operação e o que dizem não me tira o sono… encolhi os ombros.
Durante a noite, choveu muito e trovejou violentamente.
No início da operação o cheiro a terra molhada era muito agradável… apesar de as chuvas continuarem, embora mais concentradas a norte da nossa área de ação.
Tal como previra, a zona por onde andámos, durante os seis dias… mata densa e locais de difícil acesso, junto aos rios Cassai e Cuango ficava na vizinhança do acantonamento da UNITA, que estava em pacto de não-agressão, e num corredor de passagem, para norte, do MPLA e FNLA… que nesta data já tinham regressado às suas bases na Zâmbia e no Zaire.
Dizia-me um soldado: - Alferes, a mata é muito agradável mas transmite medo. Não se houve nada à nossa passagem… um ronco de um animal ou o piar dos pássaros.
Depois de um breve reconhecimento do local de partida, seguimos em coluna por um antigo trilho, na direção do primeiro objetivo. À frente, ia o meu cão pastor alemão, muito desejado por todos, o Buda… o melhor pisteiro, num frenético vai e vem. Logo a seguir, com distâncias milimetricamente interiorizadas, ia o Freitas ou o Nuno, quase sempre os primeiros, seguidos por mim e pelo restante pessoal em secções sob o comando do respetivo furriel.
Os três carregadores, pagos pelo exército, eram espalhados aleatoriamente ao longo da coluna.
Numa área próxima da nascente do rio Cassai assinalada como de provável “contato iminente” saímos do trilho e passámos a caminhar em zonas de vegetação, com alguns movimentos de despiste de perseguições ou de emboscadas. Estávamos nas proximidades dos antigos acampamentos de 70 guerrilheiros do 3º batalhão da FNLA. Quando nos aproximámos destes locais, onde a probabilidade de contato era maior, os carregadores ficavam muito nervosos… os medrosos e os mais comprometidos com as causas… geralmente, fugiam durante a noite, como nos aconteceu, noutra operação, junto à nascente do rio Chiume.
Parámos a meio da tarde, para recuperar forças e para pernoitar, numa zona protegida, sem vestígios de presença humana e com uma linha de água (pequeno rio) por perto.
Apesar de tudo, chamei o carregador mais velho, o Sá Moço, para saber a sua opinião sobre o local.
Respondeu-me: - Não tem turra!
Este homem, saudoso das suas quatro mulheres, falava muito pouco na nossa língua… percebia quase tudo o que se dizia… mas, entre gestos e meias palavras até conseguia contar histórias inacreditáveis.
Era de confiança, muito respeitador e uma força da natureza, que admirei muito… um sobrevivente.
Com naturalidade, não precisava:
- Os fósforos ou o isqueiro eram substituídos por uns pauzinhos em fricção sobre alguns filamentos de raízes, como a estopa do linho;
- As cordas, encontrava-as em lianas e cascas de árvores;
- A tenda, criava-a com os materiais existentes no local;
- Os remédios, encontrava-os entre folhas, raízes e cascas de árvore;
- O sabão, substituía-o por folhas e uma espécie de argila;
- A escova de dentes, era um pequeno pau, filamentoso numa ponta e aguçado na outra (os dentes bem cuidados e brancos faziam inveja);
- A ração de combate, era o que havia na natureza, folhas, frutos, cogumelos, cágados, cobras, ratos, gafanhotos, formigas; e
- A orientação, conseguia-a com quase tudo, inclusive com a estrutura do solo ou com o voo de alguns pássaros.
Montámos um pequeno acampamento com os panos de tenda onde as sentinelas se revezavam por períodos curtos. Acordámos não fazer fogo e não falar ou chamar o Buda.
Depois do que passei numa operação com os catangueses… hoje estou convencido… se houvesse guerrilheiros nas redondezas, viriam para jantar… o cheiro a comida, das nossas latas da ração de combate, espalhou-se, certamente, por uma vasta área.
De manhã, decidimos percorrer a margem direita em círculo e mudar para lá o acampamento. Ficámos mais um dia, mas muito atentos para algum movimento no anterior local. No final de um dia agitado e nervoso, antigo refúgio de muitos guerrilheiros da FNLA, consegui, apesar do frio e do chão a tremer com os longos rugidos dos leões, descansar sobre um montão de folhas secas e na companhia de um cão, que parecia nunca dormir.
O Hamilton, o nosso homem das transmissões, que não se esquecia das suas obrigações com competência, no entanto perdia-se nervoso e a gaguejar quando apanhava em linha o capitão e a sua liderança pelo medo… nem a cantar conseguia falar.
No terceiro dia, quando começou a clarear, progredimos uns bons quilómetros em direção à margem esquerda do rio Cuango, em vez da direita. Lembro-me que contrariei o plano da operação… hoje, já não sei quais foram os verdadeiros motivos… talvez por estratégia.
Durante o percurso, tivemos o cuidado de estar atentos aos vestígios… lavras abandonadas, ausência de população e trilhos que não eram usados. Mesmo assim, estivemos à vista de uma conhecida e consentida zona avançada do acantonamento da UNITA na nascente do rio Lungué-Bungo, esta localizada entre o Cassai e a região da Vila do Munhango.
O quarto e o quinto dias, entre vegetação muito densa, e com travessias refrescantes, nos pequenos afluentes do rio Cuango, foram de um sossego absoluto e com locais excelentes para recuperar as forças e passar a noite.
Se não estivéssemos em guerra, diria que foi um passeio numa região idílica, cheia de belezas naturais, onde os meus olhos viram as melhores imagens da selva africana, que nenhuma máquina fotográfica, daquela época, poderia mostrar completamente.
Num local, onde o caudal do rio aumentava e o manso murmúrio da água corrente contrastava com umas impressionantes quedas de água, vi plantas nunca vistas, árvores de grande porte, frutos desconhecidos e muita vegetação a transformar o chão num imenso e garrido tapete verde. Os peixes maiores bem junto à margem e sem medo, andavam entre numerosos peixinhos coloridos, como num aquário.
Depois do rugido dos leões, fomos contemplados com a passagem lenta de três elefantes, com a fuga de uma onça, por uma grande família de javalis, bandos de agressivos macacos cão, grandes cágados, ratos voadores com uma membrana da pata dianteira à traseira, que lhes dava a capacidade de planarem do topo das árvores até à base de outra… sucessivamente, voltavam a trepar e a planar… uma grande cobra e inúmeras cabras do mato, muito abundantes na região.
Antes do nascer do sol desmontámos os panos das tendas, arrumámos os sacos mochilas e disfarçámos os vestígios da nossa presença. No entanto, era praticamente impossível repor o aspeto do local e as clareiras abertas pelo nosso calcar na vegetação… isto, sem falar nas latas vazias e no lixo, que era colocado num buraco coberto com terra e folhas.
Ao sexto dia, como combinado, estávamos no ponto de recolha numa zona plana com vegetação diferente e dispersa. Depois de um breve controlo à área envolvente, decidimos avançar ao longo da picada. Para mim, a deslocação em viatura era o momento que mais temia… o meu sistema nervoso alterava-se de uma forma inexplicável.
Os cinco ou seis dias passados na mata transformava por completo a nossas aparências… mal cheirosos, cansados, mal alimentados e carentes de um sono sem sobressaltos, numa cama… a degradação progressiva da nossa imagem, que só dávamos conta no regresso ao quartel quando íamos a um espelho.
Passaporte para a mata
No dia seguinte, aproveitei o descanso da manhã para dar um passeio no exterior do quartel. Na proximidade do novo edifício do posto, cruzei-me com um jovem, bem vestido, talvez acima do que era normal naquele meio. Estava na posse de um papel, “passaporte”, com uma autorização temporária para poder transitar na mata. Como estávamos sozinhos trocámos breves cumprimentos com os tradicionais batimentos com a mão no peito… a minha apresentação à moda do “puto” transmitiu-lhe confiança e até me pareceu que se esbateram algumas barreiras culturais. Ficou mais solto e comunicativo… falava o português, bem melhor do que eu estava à espera.
Contou-me:
- os motivos do passaporte… uma visita a familiares na sanzala do Cucumbi;
- a sua função de professor / monitor na nossa região, pago pelo estado português; e
- a sua descendência.
Num sábado, ao fim da tarde, na loja do Sr. Capela bebemos umas cervejas e estivemos à conversa. Nunca me questionou sobre a nossa atividade militar, mas senti que gostava de saber coisas da minha vida em Lisboa. Contei-lhe como vivia, quase sem omissões e até a minha posição perante a política e a guerra. Inesperadamente, talvez com a ajuda da meia dúzia de cervejas bebidas, “disparou”: - Tenho um grande sonho! Ir para Portugal e perder-me de amores por uma branca peluda... faltou-me coragem para perguntar em que zona do corpo. Confidenciou-me, que as populações eram maioritariamente apoiantes da UNITA ou da FNLA, entre os mais velhos, e que havia alguns com familiares guerrilheiros… apercebi-me, que era um dos poucos simpatizantes do MPLA.
Mais tarde, encontrei-o em plenas funções, na sua escola, na Sanzala do Camachilonda. Pediu-me para contar algum momento interessante sobre a história de Portugal… falei sobre a padeira de Aljubarrota… adoraram… uns meses depois em António Cavula, onde estava um primo com a categoria de monitor, voltei a repetir a história.
Ele e o primo, foram amigos, que deixei e não voltei a ver… no entanto hoje aparecem assim: - Acidentalmente tirados do fundo de uma qualquer gaveta ou da minha memória onde estão arquivados, à luz do mais genuíno e feliz dos meus dias nas relações entre as pessoas.
Foram eles, que em 1974, de uma forma muito astuta e em antecipação, me incentivaram à saída breve do destacamento em António Cavula… que contarei no momento certo.
As sentinelas
Voltando às minhas deambulações nas noites escuras, entre arame farpado e momentos fortes… hoje agradeço todas as mais-valia de ter vivido aquelas situações, boas ou menos boas, na camaradagem saudável dos soldados sempre voluntários, apesar de viverem em condições subalternas e com pouco dinheiro.
Puxando “a fita” um pouco atrás:
- Numa noite, a alguma distância, vi a cara da sentinela no alto da vigia enquanto puxava uma fumaça… Bxx, queres ir encaixotado para Trás-os-Montes? Abrem-te dois buracos na cabeça, um à frente e outro atrás! Sabes perfeitamente que estão todos a confiar em ti! No dia seguinte estava muito ofendido e já era uma vítima… para o alferes de serviço.
- Noutra… num ruidoso jogo de cartas, que acabou sensatamente sem vencedores ou vencidos, menos para as cartas;
- Ainda, numa outra vez… enquanto o moço dormia profundamente e na paz dos anjos, levei-lhe a arma para o meu quarto. Acabei por me arrepender… a minha obrigação deveria ter sido outra… falámos de manhã, sentados na minha cama… em compreensão mútua esquecemos o que aconteceu. Recebi provas de um grande carácter e uma grande lição de humildade, que me ajudaram a crescer; e
- Finalmente, outra anormalidade, esta por volta das 4 horas da manhã, quase dia em África. Estava de serviço, com os elementos do meu grupo de combate. Então Axx, que se passa? Alferes não diga nada ao Capitão, só estava a esgalhar uma… à maneira. Eu vi essa parte… os outros capavam-te. Oh meu alferes, peço desculpa, estava a olhar para a loiraça do calendário e comecei a lembrar-me da miúda do cinema em Henrique de Carvalho, moreninha, calças justas, um valente papo e um par de mamas a quererem saltar para fora da camiseta. Dava-lhe uma martelada… bem enterrada até aos tomates… ia pedir mais, de certeza. Repara Axx, o capitão não é para aqui chamado, só estamos nós os dois... percebi o motivo do teu desatino, mas podemos ficar em perigo se não estiveres atento e compreende, estávamos todos a confiar em ti. Alferes, tem toda a razão, somos amigos e não acontece mais, juro! Mas, acredite… aquela miúda é toda tesão!
O que acabei de relatar, foram casos isolados e não aconteciam com a frequência, como eventualmente poderá parecer nesta narrativa. Pelo contrário, devido à nossa velhice na guerra, ao isolamento dos postos de vigilância e a alguns sustos à mistura, as sentinelas iam ficando mais “profissionais” e engenhosas nas armadilhas e nos pontos de diversão para tornar o intruso num alvo fácil… e já usavam a interajuda de um amigo, não escalado, para colaborar no serviço.
Missão humanitária
A minha primeira saída para uma missão humanitária aconteceu depois de um pedido de ajuda urgente ao comandante de companhia, para socorrer uma mulher da aldeia de Samuchima, que estava em trabalho de parto há demasiado tempo, no meio de grande sofrimento e de preocupação dos seus familiares.
Fui num velhinho jipe Williams, na companhia de um condutor e do enfermeiro Luís.
Pelo caminho o enfermeiro dizia: - Nunca ajudei num parto, nem tenho material apropriado.
Perguntei-lhe: - E porquê um alferes miliciano especialista em minas e armadilhas?
Quando chegámos, já era noite. O ambiente não parecia pacífico e as condições de higiene eram as piores. Mesmo assim, sentimos a obrigação de ajudar.
Tudo estava a acontecer numa palhota pequena de chão térreo, em cima de uma esteira, à luz de um escuro candeeiro de petróleo e com algumas mulheres em grande ladainha.
O pai da criança, que tinha pedido o socorro, fugiu com medo dos familiares da mulher.
- Luís, acho que só fomos chamados para aqui em desespero de causa.
- Bem, temos que fazer alguma coisa para melhorar isto!
- Vou pedir para estas mulheres saírem e com os faróis do Jipe, junto à porta, vai haver mais luz lá para dentro.
O Luís quando se aproximou da jovem não aceitou a situação dos rituais, que estavam a acontecer: - A cinza espalhada no corpo e o excremento de cabra no chão. Solicitou a duas mulheres a rápida limpeza do local. Em seguida desinfetou-lhe o corpo.
Com as mãos (não havia luvas) e com muita coragem daquela mãe, tentámos tudo para facilitar o nascimento da criança. Mas tudo correu mal, mesmo.
Aquele filho, não queria nascer.
- Luís, na faculdade falou-se em partos provocados.
- Só temos soro… mesmo assim devíamos tentar!
- Pela manhã logo se via o resultado!
Informei o chefe da aldeia e as mulheres da família do nosso regresso ao quartel e o que se tinha feito. Voltávamos de manhã. Pedi para lhe estimularem os seios e ajudarem quando a criança estivesse mesmo para nascer.
No povo quioco, logo que uma mulher sente os primeiros sintomas do parto, pede à mãe ou a outra mulher da família que chame a tchifungudji (parteira) e todas as mulheres que já tiveram filhos, para que auxiliem em tudo o que for necessário.
Os homens, as crianças e ainda as mulheres que tiveram relações sexuais no dia anterior não podem assistir ao parto.
A futura mãe senta-se numa esteira costas com costas com uma outra mulher, a ajudante, que lhe entrelaça os braços prendendo-a contra si. A parteira fica sentada em frente a dar instruções.
Conforme me contaram, depois do nascimento, mais ninguém pode mexer na criança, só a ajudante e a parteira. Cortam e atam o cordão umbilical, lavam-na em água morna e entregam-na definitivamente à mãe. Esta recebe um copo de água para beber e borrifar o filho, dizendo, mais ou menos isto, para que fiques bonita(o) e forte.
No dia seguinte, há uma espécie de batismo imunizante, que é feito por todas as crianças da aldeia com raízes, que esfregam na criança, afastando assim todos os feitiços e os males. É a partir deste momento que qualquer outra mulher poderá pegar, mas continuam a ficar de fora as mulheres impuras, com relações sexuais no dia anterior.
Ao terceiro dia, é feriado na aldeia e dia de festa. A parturiente lava-se no rio, na altura mais quente do dia, pedindo à água que lhe dê forças e frescura. É neste dia que o pai dá um nome ao filho. O nome pode ser o de um seu antepassado, de um amigo ainda vivo, ou de um acontecimento importante que se tenha passado no dia do nascimento.
No entanto, só no ato da circuncisão, nos rapazes, ou da iniciação, nas raparigas, é que o verdadeiro nome será escolhido.
De manhã, quando chegámos à aldeia a criança já estava lavada e ao colo da mãe com o cordão umbilical cuidado pela parteira. Era um rapaz. Ficámos contentes com o final feliz daquela mãe. O miúdo ficou a chamar-se Carlos, temporariamente.
Éramos jovens e culturalmente muito diferentes daquele povo, mas iguais perante o sentimento simples de ver nascer uma criança. Aprendi muito, nascemos iguais e até com a mesma cor e a aflição geral num parto basta para esquecer ódios de morte.
Acerca do pai… não me recordo ou não dei a devida importância à situação… certamente regressou à aldeia.
Capinar
A vida no quartel, entre arame farpado, mantinha-se sempre igual e rotineira, mas era exigente e com demasiada disciplina, incluindo o vestuário e os horários.
Entre o capinar e a plantação de abacaxis, havia sempre trabalhos de manutenção ao quartel e obras nas sanzalas.
O dia em que estava de fiscal (ridículo) aos soldados que capinavam o quartel, uma tarefa importante para garantir a limpeza e a higiene da nossa pequena cidade, era um frete para mim e do desagrado de todos… entendiam-no como um castigo… acabava em fugas, baldas e desentendimentos.
Numa das minhas passagens, encontrei-os sentados em amena cavaqueira.
Perguntei:
- Então Cxx, o que estão a fazer?
- Estamos a capinar meu alferes.
- O que vejo é só conversa e num sítio onde nem sequer há capim.
- Alferes, a velhice é um posto… se continuarmos aqui o capim não cresce mais, como está a ver.
Primeiro Natal em Angola
Como era o último fim-de-semana antes do Natal, fui assistir ao habitual mercado desta época. Era muito concorrido e animado entre as gentes das sanzalas. Vendiam farinha de mandioca, bem como algum feijão e outros produtos proveniente das lavras. As trocas criativas por peixe seco, carne seca, óleo de palma e panos eram os momentos mais esperados e o centro de todas as atenções.
O primeiro Natal em África estava por horas.
Já não me lembro dos pormenores da consoada, da árvore de Natal, da música alusiva à época, se a houve, do bacalhau com batatas ou do bolo-rei. Porém, a calma nas tarefas era evidente e o ambiente geral de boa disposição era contagioso.
Quando anoiteceu passei pelas sentinelas e pelas casernas com uma mensagem de amizade… afinal eram eles a minha família, mais próxima.
Demorei-me um pouco mais na caserna do meu grupo de combate, onde, no meio de um grupo de soldados a jogarem à lerpa e outros a conversarem e a rirem, improvisaram uma mesa com chouriço, presunto, queijo, bolos secos, pinhões e uma garrafa de espumante, tudo do puto.
O Cassiano, mais distante da noite festiva, estava a reler aerogramas, outros mais cansados, recuperavam de uma semana na mata com roncos surdos. Ao fundo, a um canto, estava o Alves, que sem dar pela minha presença mostrava um ar calmo e feliz, provavelmente a reviver os amigos ou a namorada.
- Então Alves?
- Um bom Natal!
- Desculpe meu Alferes, estava distraído a sonhar com a consoada junto da família, com a Missa do Galo e com a fogueira no adro da igreja.
A minha noite de Natal continuou no bar de oficiais entre espumante e petiscos, uma animada conversa, dois whiskies e algumas anedotas alusivas à época… restava o momento das ofertas do Movimento Nacional Feminino. Pelo meu lado, recebi um número do Cavaleiro Andante de 1966, um número antigo da revista Flama e um estojo com uma “Gillette”, um pacote de cinco lâminas quase ferrugentas e um pincel para espalhar o sabão.
Na manhã seguinte, Dia de Natal, fui dar um passeio no exterior do quartel na companhia do meu cão Buda. Andava descontraído, em calções, camisola branca de manga curta e desarmado… respeitando o dia.
Cruzei-me com dois Cipaios e até… a Benita andava por ali, junto ao arame farpado.
Quando passei junto ao depósito da água, ouviam-se gritos e mais gritos, sem parar… alguém estava a ser interrogado e provavelmente não queria falar… meio século depois ainda sinto aqueles gritos.
A vida no Alto Chicapa, nem sempre era tão cor-de-rosa como a gostam de pintar. Num outro caso, que presenciei numa tarde junto ao posto, era uma tentativa miserável de obrigarem a falar um homem deitado no chão de mãos amarradas, com uma roda do jipe encostada à cabeça e com o motor em aceleração, … assustadora.
Nunca consegui saber mais do que aquilo que presenciava, por mera casualidade… e quando quis saber mais... com maus modos contaram-me: - Os procedimentos habituais é entrega-los à DGS / PIDE (quem?).
Carlos Alberto Santos
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