Entre a gloriosa bicha de pirilau e a vacina de dose cavalar
Alto Chicapa, 01.07.21
Não sendo grandes motivos de história, selecionei três momentos da minha juventude para vos contar... para os quais não estava preparado.
Na instrução de recrutas ou na recruta, como vulgarmente lhe chamavam, os primeiros dias iam-se alternando entre atividades físicas e procedimentos de burocracia acessória.
Começo pela fotografia para o cartão ou caderneta e processo militar, onde incluíam a PIDE. Era um procedimento do tipo presidiário... uma parede branca, um boné e um casaco do uniforme, que serviam para todos, e uma placa em chapa pendurada ao pescoço, com um número escrito à mão, o número mecanográfico, que acabava por ser banalizado, melhor... desprezado ao longo da instrução, devido ao uso das alcunhas: o canina, o tretas, o missas (rezava à noite), o risadas, o cu de alface, o chupa grelos, o beiças, o corno feliz, o três pernas, o piçalho, o conas e o conichas (andavam sempre juntos) e o cacaralho (era gago), entre outros menos icónicos.
Depois... veio o dia da inspeção médica. Estávamos em Janeiro de 1971, ao frio, num longo corredor... um pelotão todo nu esperava em bicha para entrar no posto médico. Quando chegou a minha vez, entrei muito devagarinho... nos meus 50 kg, ia à defesa para a primeira brutalidade e também porque já há algum tempo que não sentia os dedos dos pés.
100347 de 69, apresenta-se!
Nem um olá recebi... tenho dúvidas se olharam para mim.
Encontrei um médico sentado a uma secretária, com os olhos fixos em qualquer coisa, e um cabo enfermeiro, com cara de forcado na reforma, apoiado numa minúscula mesinha... escreviam alternadamente num livro enorme.
Só falou o médico :
- Já sei!... não sofre de nada!
- Chegue-se aqui!
- Pela ponta, levante o pirilau! Arregace!
Enquanto me apalpava os fundos, sem mágoa, concluí que a bicha no corredor e o levantar do pirilau, davam razão para que se ouvisse: todos em bicha de pirilau.
- Vá-se embora! Leve este papel e entregue-o ao meu major dos psicotécnicos... estava escrito, apto para todo o serviço.
- Nosso cabo... onde estamos? Rápido, chame outro!
Para terminar... no fim do primeiro mês de instrução, a uma quinta-feira, aconteceu o dia da primeira vacina... a vacina, que dava para tudo.
Apesar de estarmos num inverno, frio e chuvoso, houve uma cerimónia cheia de pompa e circunstância, mobilizaram-se os pelotões e as mais altas patentes do quartel.
Em grupos de 20, fomos para enfermarias improvisadas... tronco nu e de costas voltadas sentámo-nos em bancos corridos, os do refeitório.
Os comentários das anteriores vítimas, faziam adivinhar o início de uma "carnificina".
De repente, aparece um enfermeiro com uma mini esfregona improvisada de um maço de algodão... sem avisar, besunta o nosso lado direito com tintura de iodo, em movimentos circulares pelo ombro e na omoplata.
Atrás vinha um soldado a transportar uma terrina cheia de agulhas, que pareciam ferros... era a terrina da sopa, que costumava ir à mesa.
A fechar o cortejo, havia um outro enfermeiro com ar, sinistro... as anteriores vítimas já o tinham apelidado de espetador de ferros.
À medida que o trio se aproximava, iam-se esclarecendo todas as dúvidas acerca dos sons, que entretanto se ouviam.
O espetador, antes de enfiar a agulha, que mais parecia um cano, dava um chapadão nas costas... até fazia parar a respiração.
Finalmente, o último enfermeiro com uma grande seringa, semelhante a um inseminador para gado, distribuía as doses a olho o que provocava um desacerto para o último, do banco... ou não levava a dose completa ou levava também o reforço.
Posso confirmar, aquilo era mesmo cavalar... fiz todo o serviço militar sem constipações, enxaquecas ou dores de qualquer espécie, nada me fazia mal... só não fiquei imune à malária / paludismo e aos "turras".
Voltando à enfermaria.
Um camarada conhecido por touro... uma força da natureza... tinha uma fraqueza, não conseguia ver agulhas.
No banco corrido, o touro fazia das tripas coração para não ver o que se estava a passar.
Aconteceu que, depois de levar com o líquido e antes que lhe retirassem a agulha, levantou-se para sair dali. Gritámos para se sentar e alguém acrescentou: ainda tens a agulha.
Olhando para o ombro, para confirmar, viu a agulha espetada... de imediato, caiu inanimado no chão.
Aquela animalesca vacinação terminou com o arrancar das agulhas e com a limpeza do sangue, que já escorria pelas costas de alguns.
As dores, no lado direito do corpo, já davam os primeiros sinais... fomos compensados com uma sessão de aplicação militar, destinada, como dizia o alferes-China, para fazer espalhar a dor.
A seguir, sem as grandes formalidades habituais, fomos de fim de semana.
Já não tenho a certeza se todas as indisposições se resolveram rapidamente só com umas aspirinas... mas rezam os certificados internacionais de vacinação do Ministério do Exército, distribuídos posteriormente, que não nos livrámos de mais vacinas, como as do tétano, cólera, varíola e febre-amarela.
Recordar, faz-me bem, a ti e a todos nós... reconstitui as tuas memórias, os sítios por onde passaste, viveste, combateste, amaste, sofreste, viste morrer... eventualmente, um parte do teu corpo e da tua juventude.
Um abraço do tamanho do Chicapa.
Carlos Alberto Santos